Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A pessoa para além da cadeira de rodas

Publicado em 19/04/2024 às 06:00.

Nas redes sociais eu via aquele jovem fazendo palestras para auditórios lotados. Nos rostos, expressões de atenção, emoção e gratidão se mesclavam naqueles públicos de empresas, escolas ou qualquer que fosse a audiência.

Comentei com um amigo que queria muito conhecer o rapaz que encantava com sua fala e sua história. Fui apresentado ao David César, que num dia 19 de abril nasceu com uma síndrome rara, chamada de Hanhart, que pode ter como característica o atrofiamento ou a ausência dos membros inferiores e superiores. Ou seja, o David nasceu sem os braços e sem as pernas. 

Nas fotos em que ele postava nas redes sociais, percebia-se uma alegria no sorriso daquela criança, que se banhava num balde plástico; dançava na festa junina; aparecia ladeado de amigos nos registros da adolescência e que, agora na casa dos trinta anos, curtia viagens e até rallys com os amigos, que dizem que ele é um bom navegador nas provas de carro, se é assim que se fala.

David me disse que escreverá um livro, em que faz homenagem aos seus amigos, que são as pernas que ele não teve.

Ao apresentar os projetos sociais que eu estava envolvido, ele se prontificou a ir comigo nos que pudesse. E fomos em vários (o que acontece até hoje). Nas escolas públicas, para falar de diferenças, inclusão, bullying, dentre tantos outros assuntos. Nos presídios, para falar de desafios, desistências e persistências. Ele sempre me alertava que não queria jamais trabalhar o vitimismo e que aquela fala enfadonha de “se eu posso, vocês também podem” não seria pautada em suas palestras.

De início, ao lidar com uma pessoa com deficiência, algumas pessoas podem não saber o que fazer ou não. Aprendi que é melhor perguntar. Ele pedia um copo com água e eu pensava se daria em sua boca ou deixaria para que ele se virasse. A resposta foi simples: pode colocar aqui no meu toquinho. David tem do lado esquerdo um pequeno antebraço, que ele chama carinhosamente de toquinho e que os amigos brincam, colocando luvas de box. É com aquela parte do corpo que ele movimenta a alavanca da cadeira de rodas motorizada, mas eu o conheci numa manual, que doía suas costas e diminuía sua autonomia.

Colocado o copo no toquinho, ele bebe, descarta o copo, pega uma caneta, apoia no rosto, escreve algumas frases. Puxa o celular do bolso, acessa o que precisa através do toque do nariz na tela do aparelho. Quando quer fazer charme, usa a língua para mandar suas mensagens e fazer suas buscas no celular.

Um dia, saindo de uma palestra para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, coloquei o David no banco do carona, guardei a cadeira manual no porta-malas e sentei-me no banco de trás. O motorista que nos conduzia para os nossos destinos estava incomodado com a sua baixa visibilidade lateral e pediu ao David que empurrasse o retrovisor direito. Ele colocou o antebraço na maçaneta da janela, rodou, apoiou-se na porta do carro para se elevar até o retrovisor e numa só tacada, abriu aquele espelho.

Eu assustei com o movimento e a agilidade. O motorista percebeu que havia ignorado a deficiência do David e ele nos mostrou que a deficiência não é ele como um todo. A cada conversa, o David aprende e ensina. Nos ensina a pensar o mundo que aceite as diferenças, a vivermos com mais empatia e respeitar o tempo de cada um.

O bom-humor pode ser uma resposta ao mundo. Mas, lógico que ele não é bem-humorado o tempo todo, assim como eu e você, provavelmente. Lembro de um dia em que um taxista olhou para ele e perguntou, com voz de assombro: “Rapaz, o que te aconteceu, cara?”. O David olhou de volta, fez uma cara de triste, quase choroso e respondeu: “cara, quando eu era taxista (...)”. Era uma brincadeira, mas até a verdade ser revelada, vi o moço ficar incolor.

A sua mãe o criou sozinho. Do pai, que escolheu não seguir com eles, pouco se sabe, pois ele se foi deixando a mãe e dois filhos. Não sei se posso assim dizer, mas a mãe e a avó deram conta do recado, que nem a falta do pai o David reclama.

Atleticano, vai a todos os jogos, torce, curte e sofre, quando o time não rende. Animado, não pode ser convidado para uma festa, que aceita. 

Para os amigos, a ausência das pernas, dos braços e das mãos do David já não são notadas, pois conseguimos vê-lo numa esfera mais ampliada.

Hoje o David é empreendedor. Montou uma empresa, a Produção Inclusiva, onde ele e sua equipe atendem empresas, prefeituras e eventos, planejando a acessibilidade e a melhor experiência das pessoas com deficiências nos espaços que elas conquistaram.

Não adianta ter intérprete de Libras para o indivíduo durante um show e abandoná-la à própria sorte antes e depois do evento, sem acessibilidade e segurança para seu deslocamento e o máximo uso do local, me explica com conhecimento de causa.

David não é exemplo para ninguém. É só um cara incomodado, o que é bom, pois nos faz mover, ao passo que ele se move também.

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