Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Grande legado de Dona Noemi, do Salão do Encontro

Publicado em 12/04/2024 às 06:00.

Tio Flávio*

Quando eu entrei naquela casa ela estava sentada, aguardando para me conhecer. Naquele dia, a visita ao Salão do Encontro, na cidade de Betim, em Minas Gerais, foi agendada para que eu desse uma série de palestras para jovens e funcionários do local.

Após a manhã de trabalho, e antes do almoço, fui à casa onde ela ficava. Cabelos brancos, com uma bengala encostada no assento, fala amável, dona Noemi Gontijo foi me falando sobre como surgiu aquela obra que é de emocionar a qualquer um que a visite.

Pegou uns boletins informativos da instituição, foi me mostrando matérias, fotos e para cada uma delas, foi contando casos. Numa das fotos, em que ela estava sentada, rodeada de crianças que a ouviam com atenção, ela me explicou que o afeto é indispensável na nossa educação. Precisamos dele para que nosso desenvolvimento se dê de forma saudável, seja o afeto familiar, importantíssimo, assim como na esfera da escola, da sociedade. Afeto é querer bem, é cuidar. 

Foi aí que ela me contou um episódio ocorrido com um professor do Salão do Encontro. Esta minha conversa com Dona Noemi já data de tanto tempo, que não sei se serei fiel ao que ela falou. Mas ela foi dizendo que tinha um artesão que era o professor de cerâmica das crianças, já que todos tinham acesso a aulas bem diferentes, como de artesanato e circo. Um dia ela chamou aquele homem e pediu para que ele observasse uma mãe amamentando. Ele assustou. O homem era muito bom, mas bem rude, não no sentido de rispidez, mas de fechado em si. Ela insistiu para que ele pudesse ver aquele ato de amor, mas ele envergonhado, desviava o olhar. Num dado momento o artesão virou para aquela professora, que é quem dirigia aquela instituição, e disse: “a senhora quer que eu veja aquela mãe dando de mamar para o filho, né? Já entendi, Dona Noemi. É preciso tirar afeto do barro, não é isso?”

O sentido, contado pela Dona Noemi naquele fim de manhã, eu levo para as minhas palestras para professores. O barro, com infinitas possibilidades, tem que ser trabalhado. O barro são algumas crianças, que não têm afeto em casa. Somos nós mesmos, presos em nossas questões e fechados para novos olhares.

Esta é uma das histórias contadas pela Noemi Macedo Gontijo, nascida na cidade de Luz, em Minas Gerais, no dia 28 de março de 1924. Educadora, artesã, fundadora e presidente de honra do Salão do Encontro.

Diplomada como professora, além de ter se especializado em Artes Industriais e Educação Artística pelo MEC, já atuou como educadora em instituições da sua cidade natal e da capital mineira. Mudou-se para Betim em 1956, onde dirigiu as Escolas Reunidas Sarah Kubitschek, além das classes anexas do Colégio Estadual de Betim, local onde iniciou a implantação de oficinas de arte, na Escola de Excepcionais Nossa Senhora da Assunção, para pessoas com deficiência intelectual.

Com o frei Stanislau Bartold, fundou o Salão do Encontro para oferecer oportunidades às pessoas em situação de vulnerabilidade social e combater a pobreza e a miséria.

Na primeira vez que estive no Salão do Encontro e que tive a grata alegria e honra de conhecê-la, fui convidado a almoçar junto às crianças e adolescentes num amplo restaurante, onde funcionários também se alimentam. Porém, quem passa na rua, pedindo auxílio, não deixa de receber, em hipótese alguma, uma refeição novinha, feita com tanto carinho por quem trabalha naquela imensa cozinha.

Pude ouvir o Coral se apresentar, com vozes de meninos e meninas que nos fazem emocionar ao lembrar que há tantas crianças que não têm o acesso à educação, a uma refeição saborosa, ao carinho de educadores e à construção de perspectivas para a sua vida. Ali é o lugar de todas elas estarem. Acho que a Dona Noemi pensa assim também, já que atendem cerca de mil crianças num lugar que mais parece uma fazenda, com algumas aulas sendo ministradas ao ar livre, em bancos feitos de tocos de madeira, debaixo de árvores, com uma alegria sem igual.

Dona Noemi já não consegue estar presente para acompanhar no que a sua obra se transforma a cada dia, mas é a responsável pela educação de diversas gerações, que foram crianças ali e hoje veem seus filhos e netos estudando no mesmo ambiente caloroso.

O Salão do Encontro é uma associação de direito privado, beneficente, que existe com a intenção de auxiliar famílias da periferia de Betim. A sede está localizada no bairro Angola, em Betim, e é o local que atualmente atende um maior número de pessoas, já que a instituição possui outras obras fora daquele espaço onde nasceu o Salão. São desenvolvidos projetos que visam a formação de cidadãos conscientes e participativos, capazes de construir seus próprios projetos de vida e contribuir para o desenvolvimento da comunidade.

Ali, em cada canto, está o carinho plantado pela Dona Noemi, a quem precisamos e devemos render as nossas homenagens.

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