Quando eu cheguei naquela casa de acolhimento de adolescentes, um menino destoava do grupo. Ele era bem pequeno, não demonstrava já ter 13 anos de idade. A voz bem fina e fraca, uma camisa que ia para abaixo do joelho, uma bermuda que precisava ser amarrada com barbante para não cair. Ele havia chegado no dia anterior e ainda não tinha roupa que coubesse nele.
Naquele dia, levamos um jogo para animar os meninos. O novato participou, mas lamentava constantemente a distância da mãe. O Conselho Tutelar o havia tirado de sua casa, um lugar bem simples, numa periferia de Belo Horizonte. O motivo a gente não precisa e nem deve saber, mas a dor daquele menino era grande. Gritava, insistentemente: “eu quero minha mãe, quero voltar para casa”.
Imaginei que se o juiz o havia encaminhado para um abrigo, significava que o lar não era um lugar seguro para ele viver. Pode ser que nem tenha sofrido violência física. Pode ser algum tipo de negligência, que também acaba se caracterizando como uma violência.
Lembrei do filme “Além da vida”, em que dois irmãos são deixados em casa pela mãe, que passa a noite usando drogas injetáveis e chega de madrugada, quando ambos já deveriam estar dormindo, mas que, na verdade, aguardavam pela chegada da mãe. No dia seguinte, ao amanhecer, a assistente social fez a temida visita surpresa. Ao avistarem a mulher diante da porta da frente, os meninos acordaram a mãe, vestiram-na com roupas de mangas compridas, para tampar as marcas das picadas da droga, pegaram mantimentos na cozinha e encheram uma sacola de supermercado para, logo depois, a colocarem para fora de casa pela porta dos fundos.
Naquela época, quando assisti a este filme, fiz a pergunta relativa ao motivo que levou os meninos, mesmo sabendo que a mãe se drogava e os abandonava, fazerem aquilo. Resposta direta: ela é a mãe deles.
Um garoto no abrigo que eu realizava a ação voluntária queria a mãe. Mesmo que ela o tenha negligenciado em algum momento, ela era a sua referência.
Indo a um outro abrigo, conversei com um adolescente, que havia chegado recentemente àquela casa, também. Apesar da alta estatura, ele dizia ser vítima de tortura em seu próprio lar. Nos primeiros dias no abrigo, ele só dormia. Mas dormia muito, mesmo.
Ao conversar com ele, ouvi que é a primeira vez em muito tempo que ele vivencia a sensação de paz. Em sua casa, ao dormir, recebia água fervente no corpo. Ele não entendia o porquê daquilo tudo, e sofria por não poder dizer que amava a mãe. Na verdade, ele se culpava por odiá-la: “sou na contramão de qualquer ser vivente. Eu odeio a minha mãe e isso é horrível, sinto vergonha e não falo isso para todo mundo, mas em função da droga, ou sei lá de que, ela descontava suas raivas em mim, desde pequeno”, dizia o adolescente, que já beirava os 17 anos e não sentia a dor de ter saído de casa, mas a culpa de achar que isso foi sua salvação e de não saber o motivo da mãe odiá-lo; “só queria saber o que eu fiz”.
Durante os 14 anos de existência do movimento voluntário que coordeno, ouvi muitas histórias. Em todos os grupos, a dor era visita indesejada, mas constante. Percebia que a culpa passava a ser um maremoto dentro das pessoas, que abalava suas estruturas e ampliava as dores. E que, infelizmente, algumas dessas pessoas nem estrutura tinham. A dor que ali habita nem nome recebia e, assim, seguia firme, sem ser reconhecida, mas resistindo.
Foram histórias como essas que me fizeram pesquisar sobre como a dor é um meio de comunicação, mandando suas mensagens, que muitas vezes não são bem interpretadas por muita gente. Na verdade, para que se entenda essas dores, é preciso um exercício contínuo de empatia, de colocar-se no lugar do outro, olhando aquela vida do seu ponto de vista, e não do nosso.
As dores passam, as marcas ficam. E como diz o poeta Zack Magiezzi: “toda cicatriz é um bilhete de uma dor que foi embora, uma dor que desistiu”.