'É preciso conhecer as revoltas em nossa história', diz Marcelo Gomes

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
17/04/2017 às 08:35.
Atualizado em 15/11/2021 às 14:09

No filme “Joaquim”, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas, Tiradentes perde a cabeça duas vezes. A primeira foi importante para a construção da própria consciência política, com um alferes se deixando seduzir pela ideia de revolta, gerada após uma grande paixão por uma escrava africana, que, na narrativa, leva o nome de Preta.

Com a fuga dela, Joaquim fica transtornado e passa a buscar incessantemente ouro para poder comprar a escrava, mas depois que a encontra num quilombo e enxerga todas as fraturas sociais no Brasil do século 18, ele muda o pensamento sobre a Coroa Portuguesa. Essas informações não estão em nenhum livro de História.

Partiram do diretor pernambucano Marcelo Gomes, que abre o filme com a imagem da cabeça do mártir – único a ser morto entre os inconfidentes – falando, de forma um pouco irônica sobre a proximidade com Jesus Cristo, arquitetada pelo regime militar nos anos de 1970. “Não queria um filme que fosse uma novela histórica. Meu cinema é mais próximo da crônica”, explica o cineasta ao Hoje em Dia.

Ele fez um filme que não busca somente apresentar um novo olhar sobre a figura de Tiradentes. O diretor de longas como “Cinema, Aspirina e Urubus” e “O Homem da Multidão” recorre ao passado para falar do presente. Como no momento em que o alferes elogia excessivamente os EUA como uma nação que preza a liberdade de pensamento e a igualdade.

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“Fiquei perplexo quando li a constituição americana, que falava que nas 13 colônias deveriam prevalecer os direitos individuais, com todos os homens sendo iguais. O filme se passa no século 18, mas foi feito no Brasil de 2017. O artista é um homem de seu tempo, de onde recebe as influências”, destaca Marcelo, que teve o filme apresentado na seção competitiva do Festival de Berlim, em fevereiro.


Gosto de fazer coisas sobre as quais eu não entendo. Se eu compreendo muito bem, não me interessa fazer (um filme). No cinema a gente descobre coisas para a nossa existência. Cinema me ensina muitas coisas. Quando li as diferentes biografias sobre Tiradentes e livros com narrativas sobre a sociedade colonial brasileira, me interessei por esse brasileiro comum, um alferes da Coroa Portuguesa, que mudou de paradigma e se transformou num rebelde, numa época de nossa história em que a sociedade vivia de forma cruel e desumana, que exterminava indígenas e levava os africanos à condição de escravos, explorando a riqueza do país e levando-a para Portugal. Foi aí que decidi contar essa história. Mas outra questão era como contá-la. Meu cinema é mais próximo da crônica, do documental, e quando tive contato com essas narrativas sobre o caldo cultural das Minas no século 18 incorporei esses relatos de como viviam, de como tomavam banho, de como se relacionam, de como viajavam... O resultado é a construção da consciência política de um soldado no período colonial mostrada na forma de crônica. Não queria um filme que fosse uma novela histórica.


Quando se descobriu o ouro nas Minas, mudou-se todo um pensamento em relação ao Brasil, de como colonizar essa região. Descoberto o ouro, promoveu-se uma corrida massiva, com pessoas de várias origens e culturas. Cerca de 200 mil pessoas foram para Minas Gerais, desbravando-se matas impenetráveis como as que vemos no filme. Eram índios da língua tupi e guarani, africanos com seus diferentes dialetos, portugueses abrasileirados, portugueses com acentos... Na hora de construir o elenco do filme, busquei essa diversidade de cores e sotaques, que é o que originou o Brasil daquela época. Nascemos como nação a partir daí. Quando li sobre o Brasil colonial, eu compreendi melhor as fraturas de nossa sociedade. É importante para compreender o presente. O passado está vivo dentro do presente. 
 Beatriz Masson/ Divulgação


A elite que se formou naquela época aprendeu muito com a elite portuguesa, que foi um espelho para a ela. Infelizmente, isso se perpetua até hoje, com nossa elite se parecendo com a do Brasil Colônia, infelizmente, desaguando na injustiça social. No século 18, a região das Minas se constitui como uma região de grande riqueza, por conta do ouro e do diamante. E o que se viu foi o surgimento de um grande contingente de miseráveis ao redor de uma pequena elite.


Tem uma coisa importante que é a gênese do herói. Uma pessoa não decide ser um herói. Isso acontece. É com sua experiência de vida que se constrói um mito heróico. Se Joaquim teve essa mudança de paradigma foi porque conviveu com esse lado mais cruel da sociedade, a partir da paixão pela (escrava) Preta e sua ida a um quilombo, gerando uma profunda revolta. Foi isso que o atraiu para um grupo de pessoas que estava lutando contra a Coroa, querendo uma mudança de poder. O que questionamos é o fato de uma elite política estar muito ligada a uma elite econômica.


O abade Reinaldo escreveu sobre isso. Certamente os inconfidentes falavam disso. No filme, eu coloco essa questão na boca do Joaquim. Documentos sobre Tiradentes na época são muito poucos, resumindo-se à certidão de nascimento e aos autos de devassa. Depois que ele foi enforcado, o Brasil virou império com Dom Pedro I e Dom Pedro II. Na República, construiu-se a partir dele um herói. Como se passou tanto tempo, os historiadores criaram diferentes versões. Para alguns, Joaquim foi o único representante da classe média dentro do grupo. Para outros, era um bode expiatório. Tudo isso é muito rico para uma história ficcional no cinema. Cinema é mentira, mas uma mentira que nos aponta muitas verdades. Para mim, essa decisão de rebeldia surge da visão de uma sociedade cruel, de seu contato com o quilombo. Falam muito na música, na comida, na capoeira e na religião como contribuições africanas à nossa cultura, mas eles também trouxeram a ideia de revolta, lutando contra o domínio dos colonizadores.


Ele era um homem comum. Foi a ditadura, nos anos 70, que trouxe essa imagem de Tiradentes como Jesus Cristo, mitificando-o. Para mim, um cidadão comum pode ter atos heroicos. E, sim, foi um herói porque foi o único a perder a cabeça, entregando a sua vida à Coroa. Ele morreu pela causa. Outro elemento que é muito nobre dele foi, próximo à sentença, ter assumido toda a culpa da conspiração, enquanto os outros inconfidentes negaram.


Foi Brecht quem disse triste o país que precisa de heróis. É preciso conhecer melhor as revoltas que tivemos em nossa História, como a insurreição pernambucana, a balaiada, a revolta dos malês, essa comandada por escravos de origem muçulmana. Entender esses momentos nos ajudará a construir um país melhor, com mais justiça social.

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