'A grande arte se perdeu', avalia Carlos Bracher

Thais Oliveira
Hoje em Dia - Belo Horizonte
21/03/2016 às 09:52.
Atualizado em 16/11/2021 às 01:52
 (Ricardo Correia de Araújo/Divulgação)

(Ricardo Correia de Araújo/Divulgação)

Não é apenas com os pincéis que Carlos Bracher sabe fazer arte. A cada palavra, uma verdadeira obra poética é construída por meio de sua fala. Mesmo que o vocabulário seja apurado, o artista plástico consagrado, contudo, não titubeia e nem esconde seu descontentamento sobre os rumos que a cultura tem tomado no Brasil.
Além de não aprovar a cena atual, ele considera a descontinuidade de projetos da área como a primeira reação perante a qualquer crise. Para ele, o cenário político-econômico não apenas impacta a cultura, como também mina aquilo que o homem tem de mais “verdadeiro” e “sublime”: os sonhos.

Apesar dos desagrados, ainda há o que faz os olhos de Bracher “brilharem”: o artista visual sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), a quem ele compara com ninguém menos que Vincent van Gogh (1853- 1890).

Você pinta desde os 14 anos de idade, ou seja, dedicou grande parte da sua vida à arte. Qual é a avaliação que faz de toda essa trajetória? Está satisfeito com o que já construiu?

Um artista é muito autocrítico de si mesmo. Esse entregar-se é um rumo possível e viável. Mas nem sempre correspondente ao que devesse ser. O instante do momento é que cria a solução. Acho que estou dirimindo bem as coisas. Por via das dúvidas, sempre acredito na intuição. Porém, de qualquer forma, creio que o que fiz foi válido, corresponde basicamente aos meus anseios, à vontade final de meu destino como artista.
 

A arte é um advento inesperado, que, às vezes, o próprio artista não se dá conta. A obra é maior que o artista.

Por que escolheu Ouro Preto para viver?

Ouro Preto. Eis a questão. Foi uma decisão de vida, de expressamento do que sou, da minha condição de verter as sensações de meu próprio cerne. Este cenário barroco atingiu-me por inteiro, desde aquele agosto de 1964 quando aqui estive pela primeira vez. Foi uma espécie de soco no meu espírito, estremecendo-me as bases, as fendas do meu ser. Nasci em Juiz de Fora, ganhei o “Prêmio de Viagem” do Salão Nacional de Belas Artes, fiquei dois anos na Europa e, quando voltei, já vim para cá (Ouro Preto), com a (minha esposa) Fani e onde tivemos nossas pérolas, as filhas Blima e Larissa, para a velha Vila Rica das profundezas mineiras. Vim para reconquistar o ventre de mim mesmo nessa orquestralidade umbilical de minha própria essência, onde resido há exatos 45 anos.
 
São mais de 200 exposições realizadas no Brasil e no mundo. Dentre este grande acervo que construiu, tem algum trabalho pelo qual nutre um carinho especial?

Sempre tem. Em verdade, são os quadros que nos conduzem e são eles as luzes dos caminhos. Um artista se representa pelos quadros, a totalidade de sua obra. Os quadros, como acredito, estão à nossa frente e eles vão nos puxando, fazendo-nos crer no próprio valor intrínseco deles, como nossos vislumbres, a força e a fé de nossa possibilidade. Um bom quadro de minha autoria é maior que eu, que minha própria condição de criar. A arte é um advento inesperado, que, às vezes, o próprio artista não se dá conta. A obra é maior que o artista. Por exemplo, o meu “Caminhão Mack” supera a minha capacidade de pintar. Vendo-o, não acredito ter sido eu o seu autor.
 
É verdade que pintou mais de 100 quadros da Série do Van Gogh ouvindo “A Paixão Segundo São Mateus”, de Bach? Se sim, por quê? Qual sua relação com a música?

Sim, é verdade. Durante a série que fiz em homenagem a Van Gogh, por seu centenário de morte, fiz-lhe um algo de meu coração ao meu sagrado mestre, ao ser que me dá seiva das vertentes. E, por uma questão absolutamente inexplicável, ouvi uma só música, essa que fez o liame dessa história de amor, onde a “Paixão Segundo São Mateus” se colocou como elemento essencial dessa interação misteriosa dos silêncios, da vasta harmonia, por essa figura que se afigura exponencial em minha vida: Vincent Van Gogh. E a música é tudo, o centro de uma ebulição abissal dos encontros impossíveis.

Em “Bracher – Pintura e Permanência”, pela primeira vez, fez uma exposição interativa, com espaço multimídia e cenografia. O que acha da convergência das artes plásticas com o digital?

É, o caminho é esse. É, e será. As linguagens vão se estreitando, até mesmo, se necessitando entre si. E a multimídia tornou-se, desde já, numa saída absolutamente válida aos povos, à humanidade de modo geral. Mais ninguém vive sem esse fantasma chamado “telinha”, um verdadeiro ícone dos tempos atuais e, sobretudo, do futuro. Trata-se de uma interação absolutamente perfeita, inalienável da riqueza das linguagens.

Nesta mostra, que foi realizada no CCBB, outra coisa que aconteceu foi a possibilidade de o público acompanhar o seu processo de pintar, por meio de intervenções ao vivo. Como foi a experiência?

Pois é, eu sempre pintei ao vivo, nas ruas, nas praças ou diante de plateias, em auditórios. Ter gente vendo não me molesta nada. Na hora de pintar, me fecho por inteiro, entro num vazio absoluto e é como se não houvesse ninguém. Por outro lado, é maravilhoso ver as pessoas emocionadas, felizes diante do instante da criação como o fiz agora, nessa série de exposições em Belo Horizonte, São Paulo, Rio, Brasília e Ipatinga, em que pintei, pela ordem: Lô Borges, Maestro Júlio Medaglia, João Cândido Portinari, Vladimir Carvalho e Dom Lélis Lara.

E a multimídia tornou-se, desde já, numa saída absolutamente válida aos povos, à humanidade de modo geral. Mais ninguém vive sem esse fantasma chamado “telinha”

 
Em abril, você ocupará uma cadeira na Academia Mineira de Letras. Como recebeu o convite? Qual é a sua expectativa?

Evidente, este se torna, em si, dos mais honrosos momentos de minha vida, ao tomar posse na Academia Mineira de Letras, a Casa de Alphonsus e Vivaldi. Trata-se de uma responsabilidade imensa. Espero fazer jus ao tocante convite.
 
Você é autor de dois livros, o que mostra um interesse seu pela escrita. O que a escrita representa para você?

Sempre escrevi, mesmo antes de pintar. A palavra foi minha fonte primeira da expressão. Só depois, comecei a pintar, que se avassalou, de tal forma, que se sobrepôs ao que escrevia. Então, foi algo paralelo e as uso, ambas, as cores e as palavras, reciprocamente. E todos autores são importantes. Nós vemos a beleza de escrever em tudo, numa simples frase, numa metáfora de que se faz cântico, um poema, prosa, crônica, romance, ou na frase hermética de um filósofo.

Penso ter havido um certo hiato desgastante, onde a grande arte, em parte, se perdeu.


 
Como avalia a cena atual das artes visuais? Há algum artista que te chame atenção?

O mundo vai caminhando, seja no Brasil e no universo inteiro, onde os artistas vão se expressando, fazendo valer seus talentos possíveis. Em termos do que seja a pintura em si, não gosto tanto dos rumos pelos quais as coisas se desdobram. Penso ter havido um certo hiato desgastante, onde a grande arte, em parte, se perdeu. No Brasil, gosto muito de Siron Franco e João Câmara. Porém, no meio de uma confusão nacional e mundial, nasce exatamente aqui talvez o maior dos últimos gênios universais, este tão grande e monumental Arthur Bispo do Rosário, que, provavelmente dentro de uns 50 a 80 anos, deverá ser o maior artista do mundo inteiro, e deverá ter um reconhecimento ao nível de Van Gogh.

A cultura, de maneira geral, sofreu um grande impacto devido à restrição das leis de incentivo e da crise financeira que abate o Brasil. Acredita que falta também interesse dos governos em investir na cultura? Como avalia o cenário?

É uma questão complicadíssima. Apesar da luta indômita há séculos dos artistas em relação à cultura, o que sempre se vê é um permanente desmoronar dela, como o primeiro ato em qualquer crise. É uma pena pois esse embate é no campo existencial e dos lídimos sonhos. Essas perdas nos atingem, minando-nos o que temos de mais verdadeiro e sublime, os nossos sonhos.

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