Artistas de várias áreas criam heterônimos com personalidade forte

Thais Oliveira
taoliveira@hojeemdia.com.br
01/04/2016 às 20:21.
Atualizado em 16/11/2021 às 02:45
 (Fernando Guimarães/Divulgação)

(Fernando Guimarães/Divulgação)

O artista plástico Domingos Mazzilli falava sobre a curadora Susan O. Campo com tamanha convicção que a reportagem quase acreditou na existência da mulher. Mas Susan não é real. Foi inventada por Mazzilli. Melhor: Susan é Mazzilli. Pode parecer brincadeira, mas não é. Há uma série de artistas de diferentes ramos criando heterônimos por aí. As figuras são fictícias, mas tratadas por seus criadores com tanta seriedade quanto as obras de arte que assinam.

Diferentemente do pseudônimo, caracterizado apenas pela mudança de nome na assinatura de um trabalho, o heterôni-mo tem direito até a perfil psicológico bem delineado. Susan Campo, por exemplo, é chilena radicada em Londres. “Cá entre nós, é arrogante, presunçosa, competitiva, feminista, luta contra a obesidade e diabetes e, no momento, está desacelerando suas atividades devido à fobia social e ao ovário policístico”, entrega o artista plástico, detalhando ao final do que seria o “currículo” da curadora.

A ideia de criar Susan surgiu a partir da mostra “eu é outr@[S]”, realizada por Mazzilli em 2014, quando “incorporou” 33 mulheres como fonte de inspiração. Na lista, Frida Kahlo e Coco Chanel. A grande maioria, contudo, foi inventada.

Nelson Rodrigues, Agatha Christie, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade fizeram uso de pseudônimos

Sobrevida
Susan, porém, ganhou “sobrevida”. Passada a exposição, Mazzilli resolveu resgatar a personagem ao transformá-la em curadora de outros trabalhos dele. A razão de levar a história adiante tem relações com a carreira do artista plástico, que já teve contato com muitos curadores de exposição. Assim, Susan passou a ser uma sátira à academia de arte. “Susan vai à uma escola de arte e olha para um extintor de incêndio como se fosse uma obra de fim de curso e fala que aquilo é ‘maravilhoso’, ‘potente’, uma ‘engendra’ – palavra essa bem de curador. Gosto da academia, mas ela tem seu lado arrogante e Susan faz uma crítica sutil a coisas assim”, afirma.

A “prepotência”, que Mazzilli diz existir nesse universo, é outra questão levantada pela personagem. Como exemplo, o artista plástico destaca o abuso de poder por parte de alguns profissionais da área. “Susan é quem determina quem entra ou não numa exposição. Ela boicota os artistas ao não os colocar nos editais”, articula. 

Na ‘vida real’
Mesmo revelando-se como uma “mulher” ácida, Susan tem lá seu lado cômico. Mazzilli conta que numa das saídas da curadora, ela comprou (de verdade) uma canga para a (suposta) nora no Rio. “Ela acha que a nora tem mau gosto, por isso, ia gostar da canga de Romero Britto”, diz o artista, entre risos, com certo ar crítico. 

Desde que Susan ganhou, literalmente, corpo, passou ainda a visitar o circuito de arte mineiro. O intuito das aparições seria o de conhecer novos artistas para trabalhos (reais) futuros. “A ideia é descobrir novos talentos”, planeja Mazzilli... ou Susan (não sabemos quem).

 Em busca de mais liberdade e diversidade para criar

Com 78 heterônimos, Pessoa é considerado o precursor do recurso

O escritor português Fernando Pessoa (1888-1935) também usou heterôni-mos. Nesse caso, era uma forma de manifesto, como indica a professora de Letras da UFMG Sabrina Pinto. “Ao fazer uso de diversos nomes, ele criticou a autoria como se fosse algo único. Ele pluralizou, implodiu, questionou a autoria, pois o autor deixou de ser um e se tornou vários”.
 
Para tanto, o português criava nome, estilo próprio de escrever, biografia e até fazia mapa astral para cada escritor inventado. “Já foram descobertos uns 78 autores criados por ele. E Fernando Pessoa acabou ficando conhecido justamente por isso. Isto é: um poeta tenta discutir porque o ‘eu’ não é único e o seu nome fica conhecido pela quebra da questão da autoria”, analisa.

Mais liberdade
A proposta de Fernando Pessoa seria diferente da de vários escritores heterônimos. O motivo é que, comumente, o recurso era usado para conseguir publicar livros a preços mais acessíveis e populares, porque a fama costuma elevar os custos; fazer os trabalhos de forma mais isenta; ter mais liberdade de escrever sem ser julgado pela crítica e pelo público, dentre outros.

Foi esse último quesito que levou o fotógrafo e artista plástico André Burian a criar Seomar. Na pele dele, a pintura ganha adjetivos como “doida” e “natural”, algo impensável para o artista em seu, digamos, estilo nato.“Tenho preguiça do artista consciente, da arte conceitual. Sempre admirei o artista popular, que, como o Seomar, faz coisas estranhas, sem pensar muito. Mas eu não sou doido, então, não poderia usar o meu nome”, justifica Burian.

Conheça um pouco da arte de Seomar:

A arte “rápida” de Seomar só é possível porque trata-se de uma “pessoa” supostamente “psicótica”, um pintor “natural”, “caudaloso”, que “pinta sem texto” e “sem segunda intenção”, como propunha a descrição do personagem em uma exposição que fez recentemente.

Enfrentando barreiras

Em fevereiro e março, Seomar ganhou nova oportunidade de trabalho, desta vez na mostra coletiva “Abre Alas 12”, que teve curadoria de Adriana Varejão, André Sheik e Paula Borghi, no Rio de Janeiro. O nome, porém, que apareceu na exposição foi o de André Burian. Por quê? Exigência do “mercado”. “Os galeristas resistem a dizer que a exposição é do Seomar; isso vai acontecer”, lamenta. “Mas vou insistir nisso nos próximos anos. Quero que o Seomar exista autonomamente”.

 Lucas Prates/Hoje em Dia 

Burian – “O André é mais consciente, dominador do texto. Por isso, o Seomar não é bem eu; mas eu sendo outra pessoa”

 Músico troca nome para se desvincular de trabalho antigo

O músico Thiago Marques não chegou a criar um artista com personalidade definida, mas desde meados de 2015 responde por Zeca Polina. O motivo, diz ele, é profissional. “O nome ‘Thiago’ estava associado a um trabalho mais cover que eu fazia. A parte autoral era sempre usando o nome de alguma banda”. 

Com o lançamento do primeiro disco solo autoral, ano passado, ele enxergou a necessidade de inventar uma assinatura que o permitisse se desvincular dos trabalhos anteriores. “O Zeca é afastado de qualquer rótulo. Hoje, posso misturar tudo aquilo que gosto. Criar minha música sem amarras, mais livre”, justifica.

Para driblar a censura do regime militar, em 1974, Chico Buarque deu “vida” a Julinho da Adelaide

Outro motivo para a troca é que “Thiago Marques” é um nome bem mais comum que Zeca Polina – uma junção do apelido de infância “Zé” com “Campolina” (outro sobrenome de Thiago). 

Assista ao vídeo da música "Tour", de Zeca Polina:

O único problema é que, agora que Zeca mora no Canadá, algumas pessoas têm pronunciado o novo nome errado. “Elas dizem ‘Zica’ e eu tenho que explicar que ‘zica’ no Brasil é algo ruim e tem o mesmo som do nome de um vírus transmitido por um mosquito”, diverte-se.

Novos planos
Já totalmente encarnado em Zeca, o músico iniciou a produção do segundo álbum solo, com composições em português e também em inglês.

 Caio Veloso/Divulgação 

Zeca Polina – “O novo nome trouxe uma roupagem que, antes, estava sendo tratada como segundo plano”

  

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