'Considero tudo que fiz na minha vida como algo especial', afirma Milton Nascimento

Simples, inconfundível, grandioso. Em entrevista exclusiva, Milton fala sobre sonhos, trajetória e, claro, música.

César Augusto Alves
cpaulo@hojeemdia.com.br
15/06/2016 às 08:26.
Atualizado em 16/11/2021 às 03:54

Ao ouvi-lo, Elis Regina jurava que Deus cantava. Para muitos, incorporou a doçura do canto do rouxinol – apelido que ganhou logo cedo. De voz mansa e fala baixa, quando canta libera o inconfundível som que há quase 55 anos faz parte do repertório brasileiro. A voz de Milton Nascimento é unanimidade. Na primeira composição, “Barulho de Trem”, já mostrava que dali a simplicidade teria notória grandeza. 

Na carreira, foi muito além do Clube da Esquina ao utilizar a música como uma bandeira. Cantou por Marias, povos indígenas, trabalhadores, pelas Diretas Já, pelos estudantes, entoou os tambores de Minas. Em conversa exclusiva com o Hoje em Dia, Milton falou um pouco sobre rotina, sonhos, o glorioso passado e a forte relação com a música. 

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Música

“Música é tudo”, resume Bituca. “Ela é capaz de transformar qualquer pessoa, situação. Pode também mudar o mundo seja onde for. O que você pensar tem alguma música no meio: nas lembranças, na nossa identidade cultural, no lazer, na tristeza, na saudade, na alegria, nas comemorações”.

Há algum tempo sem material inédito, Milton gravou recentemente a canção Ventos Irmãos para “O Outro Lado do Paraíso”, filme que se passa na ditadura militar do Brasil. “A história em si foi o que mais me emocionou. Os tempos sombrios de hoje na política brasileira são o retrato fiel daquele tempo vivido no filme. Por isso eu considero quase que uma obrigação assisti-lo. É uma aula de história que não se lê nos livros”.

Recentemente, esteve em Belo Horizonte para assistir à pré-estreia do longa, onde se encontraria com o amigo Luiz Fernando Emediato, jornalista e autor do livro homônimo no qual o filme se baseia - o encontro, no entanto, não aconteceu. Presente na premiére, o músico Patrick de Jongh, que compôs a canção do filme para Milton, se emocionou ao lembrar de todo o processo.

"Sugeri que a música (Ventos Irmãos) fosse gravada pelo Milton, que era amigo do Emediato. Quando o procuramos, ele disse que aceitaria porque gostou do filme, mas com a condição de que 'Clube da Esquina 2' fizesse parte da trilha também. Claro que aceitamos, mas não estava nos planos. Ele gravou a canção e alguns vocalizes para o filme. Quando estávamos no estúdio (foto), eu não acreditava que via Milton ali cantando. A música não era minha, era dele. Eu chorei". Os dois começaram, então, a trabalhar em um álbum de inéditas. O público aguarda na torcida. 

Embora tenha "exigido" que Clube da Esquina 2 fizesse parte da trilha sonora original do filme, Milton garante: não há filhos preferidos. “Eu tenho carinho por todas as minhas músicas, cada uma delas representa uma parte especial da minha vida”, salienta.

Ouça a canção exclusiva

Sonhos

“Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / Vou sonhar coisas boas que o homem faz”, canta o eterno Bituca em “Coração Civil”, um dos sucessos da carreira, que completa 55 anos em 2017. “Quem não sonha?”, respondeu ao ser indagado sobre os seus. 

Sonhos são amigos antigos do compositor. “... E a Gente Sonhando”, que deu nome a um álbum no qual convidou amigos e deu chance a jovens músicos décadas após a composição (2010), foi uma das primeiras canções que contam com letra e música de Bituca. Foi feita no escritório de Furnas, onde trabalhava, no Centro de Belo Horizonte. Antes disso, tudo era feito em parceria com Márcio Borges, com quem “fundou” o Clube da Esquina, em meio a outros amigos.

“Todo mundo tem sonhos individuais, e comigo não poderia ser diferente. As pessoas sempre me perguntam sobre sonhos e eu digo: o importante disso tudo é nunca deixar de acreditar, pois, enquanto houver esperança, sempre haverá uma chance. Só depende da gente seguir em frente ou não”. 

Trajetória

“Considero tudo que aconteceu na minha vida como algo especial”, diz. Não é para menos. Bituca coleciona diversos prêmios nacionais e não menos que quatro Grammys. O carioca mais mineiro que existe escalou um caminho que alcança corações de fãs por todo o Brasil e Mundo.

"Quando não estou em turnê com minha banda, é uma rotina normal como a de qualquer pessoa. Café da manhã, almoço, jantar. Encontro com os amigos em casa para ver TV, assistir um filme, ouvir um disco..."

A música dele trouxe ao país uma enorme contribuição, retribuída na forma de amizades e uma grande história. “Os amigos, as viagens, os discos, as experiências que a música me proporcionou. Não tenho nada do que reclamar”.

Apesar de importante nome na luta contra o racismo por seu posicionamento e por suas letras, Milton não se considera um estandarte. “Muito forte essa palavra, não? A luta hoje deve ser bem mais ampla. Como dizia Dom Hélder (Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife falecido em 1999): ‘Os negros da África, os afros da América e os negros do mundo numa só aliança com todos os pobres da terra’”.

Bailes da vida

Um dos hits de Milton, “Bailes da Vida” desenha bem seus caminhos. Nos bailes daqueles versos, viaja-se por caminhos percorridos pelo próprio: todo artista tem que ir aonde o povo está. No próximo ano, “Travessia”, composta com Fernando Brant (1946-2015), completa 50 anos. Tendo o sorriso como companheiro de palco, Milton segue cantando pelo país. Sua travessia é essa: “Seguir em frente, com amizade, música e alegria, sempre”.

Milton Responde

Confira abaixo algumas respostas na íntegra da entrevista com Milton Nascimento.

Milton, você fez questão que a música "Clube da Esquina 2" fizesse parte da trilha sonora do filme "O outro lado do paraíso". Você tem uma relação especial com esta canção?

Na verdade, quando fui convidado pelo Luiz Fernando Emediato para participar da trilha a música já estava lá. E eu apenas pedi para que eles a mantivessem do jeito que estava, inclusive na mesma cena. E eu tenho carinho por todas minhas músicas, cada uma delas representa uma parte especial da minha vida.

O filme é bem mineiro: tem origem em Minas, tem trilha sonora praticamente mineira, narra a história de uma família mineira. Isso pesou na sua decisão de participar da produção?

Independente do lugar, a história em si foi o que mais me emocionou. E ela poderia ter se passado em qualquer país do mundo que não perderia sua força jamais. Minha decisão se deu simplesmente pela órbita em torno da figura do menino Fernando (personagem principal do filme) e a saga de sua família num momento tão sinistro como foi a ditadura militar no Brasil. E os tempos sombrios em que vivemos hoje na política brasileira são o retrato fiel daquele tempo vivido no filme. Por isso que eu considero quase que uma obrigação assistir O outro lado do paraíso, inclusive nas escolas. É uma aula de história que não se lê nos livros didáticos.

 
 

Você também já saiu em busca de um paraíso na terra, como o personagem do pai de seu amigo Luiz Fernando Emediato faz no filme? Você tem sonhos?

Quem não tem? Todo mundo tem seus sonhos individuais, e comigo não poderia ser diferente. As pessoas sempre me perguntam sobre sonhos e tal, e eu digo: o importante disso tudo é nunca deixar de acreditar, pois, enquanto houver esperança, sempre haverá uma chance. E só depende da gente seguir em frente ou não. 

Como foi a participação com uma canção do Patrick de Jongh? Parece que se entrosaram muito, a canção, como todos dizem, parece ser até mesmo composição sua...

Patrick de Jongh é um compositor de talento e sensibilidade extrema. E desde o primeiro momento em que nos encontramos num estúdio do Rio pude perceber isso. É o tipo de cara que a gente conhece e logo fica amigo. 

Tanta coisa é grandiosa em sua carreira, são tantos números, mas por trás disso tudo está o homem Milton Nascimento, o Bituca, que tem suas dores, vontades, desejos. Como é a rotina do homem e não da estrela da música?

Quando não estou em turnê com minha banda é uma rotina normal como a de qualquer pessoa. Café da manhã, almoço, jantar. Encontro com os amigos em casa para ver TV, assistir um filme, ouvir um disco... 

Você e a música se confundem. Não podemos enxergá-los como coisas separadas. A música entra em sua vida e você entra na música, se fundem. Onde a música mais te transformou e como você mais transformou a música?

A música é capaz de transformar qualquer pessoa, qualquer situação e, muito mais, ela pode também mudar o mundo seja onde for. Música é tudo. O que você pensar tem alguma música no meio: nas lembranças, na nossa identidade cultural, no lazer, na tristeza, na saudade, na alegria, nas comemorações. Como eu disse, tudo é música.

Você foi um homem que ascendeu musicalmente e politicamente na história recente do Brasil. Como você enxerga a luta do movimento negro? Você se vê como estandarte desta luta?

Estandarte? Muito forte essa palavra, não? Ainda mais num país que tem como referência a luta de Zumbi dos Palmares, José do Patrocínio, João Cândido, Carolina Maria de Jesus, Agostinho dos Santos, Dom Hélder Câmara, Abdias Nascimento, Mano Brown e muitos outros heróis brasileiros. A luta hoje deve ser bem mais ampla. Como dizia Dom Hélder: “os negros da África, os afros da América e os negros do mundo numa só aliança com todos os pobres da terra”.

Em 1967 você compõe Travessia (com Brant), seu primeiro sucesso no Brasil — e no mundo inteiro. Ano que vem a canção faz 50 anos. Você imaginava que percorreria um caminho tão longo? E agora, qual é sua travessia, qual caminho Milton segue ou gostaria de seguir?

Seguir em frente, com amizade, música e alegria, sempre.

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