‘Corrente do mal’ lembra os primeiros anos da descoberta da AIDS

Paulo Henrique Silva - Hoje em Dia
04/01/2016 às 08:24.
Atualizado em 16/11/2021 às 00:52
 (California Filmes)

(California Filmes)

Em “Corrente do Mal”, a melhor produção de terror lançada em 2015, já disponível nas locadoras, o diretor David Robert Mitchell é muito devedor do cinema de David Cronenberg, que construiu uma filmografia inteira calcada em sustos baseados em infecções e degenerações do corpo humano, mostrado como porta de entrada para o Mal.

Diferentemente de Cronenberg, cujo Mal estava representado numa sociedade consumista e hipócrita, em que as doenças geralmente liberavam o seu lado mais obscuro, Mitchell opta por um medo mais realista, focando no desconhecimento e no impacto sobre uma adolescente, ao saber que é hospedeira de um vírus letal.

Como em alguns trabalhos de Cronenberg (“Calafrios”, principalmente), em que o sexo é causa e consequência de transformações assustadoras, a doença é transmitida no coito, uma clara metáfora à Aids, reforçada na ambientação de “Corrente do Mal”, que se transcorre em algum ponto da década de 80, quando a doença foi anunciada.

No lugar do sangue, das vísceras e da sujeira, sinais da decadência humana na visão de Cronenberg, Mitchell adota um visual mais clean. Essa opção se evidencia nos primeiros minutos, quando a protagonista está numa piscina e vê um inseto percorrer o seu corpo. A sua reação é apenas mergulhar o braço na água para fazer o visitante desaparecer.

Dilema moral

O Mal pode ser passado para outra pessoa, desde que o contaminado tenha uma nova relação sexual. E esse é um interessante dilema moral provocado pelo filme: é preferível que a garota transe com um desconhecido, por quem não terá remorso? Mas como garantir se ele não será pego pelo ser que persegue aquele que está com o vírus?

Quando o portador é morto, o ser passa a correr atrás do que estava contaminado anteriormente. “Correr” é uma forma de dizer, pois ele anda lentamente, sem qualquer pressa, como se soubesse que, em algum momento, a pessoa irá cansar ou dormir, fazendo do encontro uma questão de tempo e gerando mais desconforto na plateia.

O senhor do tempo

Os antagonistas dos filmes de terror geralmente têm um açodamento, uma certa ânsia em completar suas maldades. Não é o caso de “Corrente do Mal”. Além de desconhecido, ele parece seguir um curso diferente, mais natural, como o da própria vida. O que nos leva a especular se esse ser não é o Senhor do Tempo que age sobre aquela comunidade.

Voltamos para os anos 80, num momento de descrença política – pós Watergate e Guerra do Vietnã – e a emergência do capitalismo financeiro. Embora jovens ainda, os personagens já se revelam ressentidos, saudosos de sua inocência, revelando em suas ações cotidianas uma descrença que não sabem mensurar.

Se Cronenberg deposita o colapso na conta das mentiras praticadas pela humanidade, Mitchell segue um outro caminho, em que o Mal está naquilo que não percebemos imediatamente, passando de pessoa para pessoa até que, no futuro, ele ganhe forma e rosto, mas sem nenhuma possibilidade de corrigir o que já foi feito.

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