Dona Cinédia

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
26/06/2017 às 19:49.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:16
 (Leo Lara/ Universo Produção/divulgação)

(Leo Lara/ Universo Produção/divulgação)

OURO PRETO – “O arquivo é meu mundo. Sempre vou para lá para trabalhar, quando estou chateada e quando quero lembrar de meu pai”, assinala Alice Gonzaga, emocionada, ao falar de uma atividade que cumpre diligentemente há mais de 60 anos, virando sinônimo de preservação e luta pela memória do cinema nacional. Ainda hoje ela não passa um dia sem recortar matérias de jornais sobre o cinema brasileiro ou buscar formas de as dezenas de filmes produzidos na Cinédia, estúdio criado pelo pai, Adhemar Gonzaga, nos anos de 1930, continuarem tendo boas condições de exibição, ganhando novos suportes.Personagem do documentário “Desarquivando Alice”, de Betse de Paula, exibido na abertura da 12ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, a “dona Cinédia” se diz muito cansada. Aos 82 anos, ela não quer saber mais de preencher papelada. “Cansei de ter que provar que existo”, assinala. Lembra que, não raro, tem que apresentar a ata de fundação da Cinédia quando recorre a verbas privadas e estatais. Na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que regula o cinema do país, a documentação do estúdio e dos filmes estaria, em boa parte, errada. “Até para corrigir é cansativo”, lamenta a filha de Adhemar.  “Lá diz que os filmes da Cinédia são de domínio público, por já terem mais de 70 anos. Não são. A empresa que fez esses filmes não fechou, sendo que os direitos autorais sobre eles é a sua fonte de sustento. Seria como se a empresa de um produto conhecido e antigo não pudesse ganhar nenhum tostão mais com ele”, compara. Entre os filmes produzidos pelo estúdio carioca estão grandes clássicos da cinematografia do país, como “Ganga Bruta” (1933), do cineasta mineiro Humberto Mauro, “Bonequinha de Seda” (1936), de Oduvaldo Vianna, “Samba em Berlim” (1943), de Luiz de Barros, e “O Ébrio” (1946), de Gilda Abreu. O filme de Betse de Paula fala um pouco da história de cada um desses filmes, mas o tema principal é Alice. “As pessoas não me conhecem. Sabem da Cinédia, mas quem sou eu, não”, afirma. Para ela, o documentário exibe três assuntos centrais: “A minha história, a da Cinédia e do Adhemar Gonzaga”. O material gravado por Betse, filha do diretor Zelito Viana e sobrinha do humorista Chico Anysio, daria, segundo Alice, para fazer mais dois ou três filmes. “Às vezes, ela me ligava dizendo que precisava de uma coisa e ia para o arquivo, sem que eu estivesse preparada. Aí eu acabava lembrando-me de outras coisas”. Alice sempre foi organizada. Não só entre os mais de 250 mil documentos arquivados na Cinédia, em que ela tenta despertar a mesma paixão nas duas filhas. Na vida pessoal, também é assim. Dias antes da viagem para Ouro Preto, já tinha feito a mala, separando roupas por dia em sacos plásticos. Até no mausoléu da família, Alice pôs ordem nos caixotes com as ossadas, que antes ficavam no túmulo. Contratou uma marmoraria e os colocou nas paredes, em ordem de falecimento, com nomes e datas. “A verdade é que estou cercada de defuntos. Filmes também são como defuntos”.

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