Filmado em Contagem e Ouro Preto, 'Arábia' é o único brasileiro na competição em Roterdã

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com,br
09/01/2017 às 18:13.
Atualizado em 15/11/2021 às 22:22

A ação de “Arábia” se concentra na Vila Operária, bairro que foi construído para abrigar os trabalhadores de uma fábrica de alumínio em Ouro Preto, em meados do século passado. Está longe de ser um procurado ponto turístico, “mas que, em termos históricos, é tão relevante para a compreensão da cidade quanto qualquer museu ou casarão do ciclo do ouro”, como destaca João Dumans, que dirige o filme ao lado de Affonso Uchôa. Essa observação dá bem a ideia do tom dessa produção, único representante brasileiro na prestigiada competição do Festival de Roterdã, que começará no próximo dia 25, na cidade holandesa. “A verdade é que esse ciclo nunca acabou. A matéria-prima mudou, o modo de produção também, mas a lógica de exploração da terra é ainda mais violenta hoje do que ontem”, completa Dumans, que não esconde o caráter político do filme. É Affonso quem dá nome aos bois, ao falar sobre a “sanha grotesca” em destruir todo e qualquer pilar de civilidade do país em nome do mercado. “A maior ilusão infantil vigente no mundo de hoje é a que promete um futuro de nenhum imposto e maior fartura. O Brasil está hoje entorpecido por essa falácia”, critica Affonso, explicando que o filme se debruça fundamentalmente sobre o esfacelamento de uma identidade coletiva do trabalhador. Vocês já trabalharam juntos, mas é a primeira vez que fazem um filme a quatro mãos. Por que esse projeto em específico tinha que ter uma condução dupla?João Dumans – Não foi uma coisa muito pensada. Começamos a conversar sobre o filme quando estávamos no meio do processo do “A Vizinhança do Tigre”, em 2011. Desde o início, tínhamos a ideia de fazer um filme que misturasse esses dois lugares onde crescemos e com os quais temos uma relação muito pessoal: Ouro Preto, no meu caso, e Contagem, no do Affonso. O argumento mudou muitas vezes desde então, mas esse princípio permaneceu. Queríamos também desenvolver melhor algumas ideias que já estavam presentes no “Vizinhança”, sobre as quais vínhamos pensando juntos, e que pareciam pedir uma outra abordagem. Então foi natural que as coisas acontecessem assim. Acho que nos últimos anos esse modo de trabalho, de criação e direção conjuntas, tem se tornado cada vez mais comum. Principalmente porque conceber e desenvolver uma história é algo muito difícil. Fazer um filme hoje é sem dúvida algo mais acessível, mais possível, do que há 50 anos. Mas escrever, pensar uma narrativa do início ao fim, continua a ser algo incrivelmente difícil. É um processo lento, cheio de falsos caminhos, especialmente porque estamos muito condicionados pelo que vemos. E por mais que seja difícil trabalhar em dupla, principalmente quando se trata de um processo criativo, esse tipo de colaboração pode também ajudar a manter as ideias claras, a não ceder às facilidades, a não perder de vista aquilo que estamos fazendo. 

A história de “Arábia” é narrada retrospectivamente, como se fosse um grande flashback, registrando a trajetória de Cristiano (Aristides de Souza), um jovem do bairro Nacional, em Contagem, que chega a Ouro Preto para trabalhar numa siderúrgica

 Inicialmente, “Arábia” era o nome de um curta que vocês fariam. O que mudou de lá para cá? Qual a razão da referência ao conto de James Joyce?João Dumans – Em 2013, quando começamos a fazer as primeiras pesquisas de locação em Ouro Preto, guiados por um roteiro bastante diferente do atual, pensamos em fazer um curta como um modo de nos familiarizarmos com a cidade, e de certa forma com nós mesmos, já que nunca tínhamos dirigidos juntos. Foi aí que o Affonso trouxe a ideia de trabalharmos o conto do Joyce como uma espécie de preparação, mas também como uma forma de pesquisa. Esse conto é ambientado num bairro proletário, na Irlanda, e conta a história de um garoto que se encanta por uma quermesse, uma espécie de feira itinerante que chega à cidade e cujo nome é, justamente, Arábia. No fim das contas, não retivemos quase nada dessa história, a não ser o nome, mas aproveitamos algo da atmosfera que atravessa quase todo o livro “Dublinenses”, do qual o conto faz parte, e que tem a ver tanto com esse contexto proletário – sempre envolto por uma aura de solidão, de melancolia – quanto com a ideia de revelação, de epifania, que em um momento ou outro das histórias atravessa os personagens. Mas tudo isso é muito sutil, não existe uma referência direta. Outros escritores, principalmente brasileiros, talvez tenham sido até mais importantes nesse processo de escrita, como Oswaldo França Júnior, Graciliano Ramos e João Antônio. Mas essa relação não é nada reverencial ou celebratória. É uma forma de aprendizado. Foi nosso modo de tentar entender como representar o universo do trabalho de uma maneira justa, verdadeira, mas também emocionante, cativante. N/A / N/A Em todos os filmes que vocês já fizeram, creio que o que une todos eles é o interesse pela questão social. É isso mesmo?Affonso Uchôa – Eu não vejo dessa forma. O “interesse social” pode redundar no vício “conteudístico”, em que a suposta nobreza do tema já justifica o filme, ou descambar para o panfletário, para a chantagem emocional com o espectador. Prefiro pensar que os filmes que faço (e, obviamente, isso se refere ao “Arábia”) são marcados por uma atuação política do cinema. No sentido de serem filmes não apenas dedicados a entender as fraturas do mundo em que vivemos, mas que também promovem um questionamento de forma, de linguagem, assim como também experimentam outros métodos de realização. É claro que os desajustes sociais me interessam. Como cidadão, acima de tudo, eles me angustiam. Mas não vejo como papel do cinema meramente registrá-los ou expô-los. Se não houver experiência radical na forma e no método de criação, não vai ter transformação para o espectador. Meu maior desejo não é fazer alguém concordar comigo, mas sim contribuir para que o mundo seja questionado.  

No Festival de Roterdã, que será realizado de 25 de janeiro a 5 de fevereiro, o longa-metragem mineiro concorrerá ao troféu Hivos Tiger com produções de países como Espanha, Estados Unidos e Índia. O vencedor receberá um prêmio em dinheiro no valor de 40 mil euros (cerca de R$ 134,8 mil)

 Affonso, novamente você recorre a Contagem, ao seu bairro, como cenário. No caso de “Arábia”, você usa um universo particular, que conhece bem, para falar de uma realidade do país?Affonso Uchôa – Já era por aí também no “Vizinhança”. Ao menos, eu vejo dessa forma. Mas “Arábia” tem uma diferença: em termos absolutos, são bem poucas cenas rodadas aqui no bairro Nacional. Mas isso não significa que o bairro não esteja permeando todo o filme. Em termos narrativos, o personagem do Juninho (Cristiano) sai do bairro Nacional pra nunca mais voltar. E o que ele faz enquanto não volta, rodar as estradas do Brasil em busca de trabalho, é a maior parte do filme. Em termos simbólicos, eu vejo essa história como uma figuração ancestral de um dilema essencialmente humano: a impossibilidade de se voltar a uma origem, em reviver a infância, em reatar os nós da experiência. A vida é uma correia que só puxa pra frente. Cristiano vive isso no “Arábia”. Pra seguir em frente, às vezes é necessário sair do nosso bairro, do nosso lugar, carregando esse lugar por dentro, como memória. Cristiano roda pelo Brasil, mas, pra mim, ele sempre está carregando o bairro Nacional, as periferias todas, junto com ele.  N/A / N/A Ao fazer esse balanço de 10 anos do país, a gente pode dizer que há uma conotação política? Afinal, são 10 anos que tivemos o PT no governo.Affonso Uchôa – Antes de tudo, é preciso deixar as coisas claras: por mais defeitos e limites que o período do PT no governo federal apresente, ainda é infinitamente preferível à essa bandalheira nefasta do governo atual. Não é apenas o aspecto legal que importa (embora seja relevante), é a sanha grotesca em destruir todo e qualquer pilar de civilidade do país em nome do mercado, que torna essa administração atual um acinte. A maior ilusão infantil vigente no mundo de hoje é a que promete um futuro de nenhum imposto e maior fartura. O Brasil está hoje entorpecido por essa falácia. Dito isso, “Arábia” fala dos anos PT, mas indiretamente. O filme, dentre muitas coisas, fala do esfacelamento de um identidade coletiva do trabalhador e sua substituição pelo individualismo customizado. Esse é um processo mundial, é o momento em que vivemos. No Brasil, é triste constatar que o PT, um partido de trabalhadores, ao sobrevalorizar o papel do consumo na construção de cidadania, ajudou a intensificar esse processo de “esfarelamento de consciência” do trabalhador. “Gente é pra brilhar”, escreveu (o poeta russo Vladimir) Maiakovski (1893-1930). No Brasil dos últimos dez anos, gente era pra ter emprego e comprar. Hoje é para obedecer calado. Quando o emprego não basta e o silêncio não satisfaz, alguma coisa diferente surge na cabeça. “Arábia” é um pouco sobre isso.  

Affonso Uchôa e João Dumans ganharam a Mostra Aurora da festival de Tiradentes em 2014. Affonso dirigiu e Dumans participou do roteiro desse projeto

 Os seus filmes carregam fortes elementos documentais, mesmo nas ficções. Essa abordagem está presente também em “Arábia”?Affonso Uchôa – “Arábia” é um filme eminentemente ficcional. Existem influências da realidade, mas a forma com que o filme as trabalha tudo isso é ficção. Esse era nosso desejo quando começamos a fazer o filme: levar a nossa experiência iniciada no “Vizinhança” para outro registro. Para caminhar nessa direção, resolvemos, de certo modo, até radicalizar essa experiência e encenar vez por outra de modo mais teatral. Na verdade, a gente pensa muito o “Arábia” como um discreto “teatro do trabalho”, em que, paralelo à história de Cristiano, em alguns momentos o palco do cinema se oferece para capturar a memória de alguns personagens, todos trabalhadores, todos desgarrados.

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