Letras de música com conteúdo machista são questionadas e compiladas em sites na internet

Jéssica Malta
jcouto@hojeemdia.com.br
14/04/2018 às 09:11.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:20
 (Arquivo pessoal/Divulgação)

(Arquivo pessoal/Divulgação)

Taca a bebida, depois taca e fica/Mas não abandona da rua”, canta MC Diguinho na versão light de “Só Surubinha de Leve”, música divulgada no início do ano. Apesar da tentativa de suavizar a letra – que na versão original sugere que as mulheres sejam alcoolizadas, abusadas e abandonadas na rua – o funkeiro não conseguiu abafar a polêmica inicial. A música foi retirada dos catálogos do Spotify e do Deezer após apelos de internautas, e incendiou o debate sobre o machismo nas redes sociais. 

Mas a canção do carioca é só a ponta do iceberg: não faltam exemplos explícitos de sexismo e misoginia cantados na história da música brasileira. Podemos até pensar em uma tradição equivocada, que remete a canções como “Ai Que Saudades da Amélia”, de 1942.

Foi justamente para ilustrar esse ponto e ampliar o debate sobre a presença dessas canções no cotidiano que as publicitárias Lilian Oliveira, Carolina Tod, Nathália Ehl e Rossiane Antunez lançaram, no início do mês, o site “MMPB – Música Machista Popular Brasileira”, um compilado com mais de 100 canções que trazem letras com conteúdo considerado machista. 

Segundo Lilian Oliveira, a iniciativa surgiu do desejo do grupo de criar um projeto de caráter feminista, e o gancho para fazer o site surgiu após o lançamento de MC Diguinho. “Na época ficamos revoltadas com a música, uma clara apologia ao estupro. Mas nos incomodou muito a demoni-zação do funk. Por isso resolvemos reunir esses dados e mostrar que o machismo está presente em diversos estilos da música brasileira”.

Depois de um período de pesquisas, o grupo reuniu um repertório variado, com músicas de nomes consagrados como Chico Buarque, Roberto Carlos, Zeca Pagodinho e até mesmo representantes femininas, como Ludmilla e Valesca Popozuda. “É um repertório que está em constante atualização”, destaca Oliveira. 

É notável no site a presença de representantes do sertanejo atual, como Marcos & Belucci, Henrique & Diego, e Fernando & Sorocaba. Ela revela que outras 80 músicas ainda devem ser adicionadas à plataforma nos próximos meses. 

Histórico

Mesmo destacando certas artistas e suas canções, a publicitária ressalta que a intenção não é promover um boicote às produções musicais. “A existência dessas letras nos ajuda a fazer uma análise de como a mulher tem sido retratada ao longo da história”, pontua. “Queremos provocar a reflexão para que as pessoas comecem a pensar também em outras áreas da vida: perceberem como o machismo está presente nos pequenos detalhes”, afirma. 

>Para reforçar esse questionamento, o site funciona de maneira bem didática. Os trechos machistas das canções são identificados e explicados, com links externos que direcionam para materiais que tratam dos temas apresentadas nas canções – que vão desde rivalidade feminina à violência contra a mulher. “Imaginamos que centralizar tudo em um site e só destacar as questões problemáticas não ajudaria. Então resolvemos destrinchar essas músicas, tentando explicar o motivo de elas serem problemáticas e o porquê de aquilo não poder passar batido”,

Apesar de recente, Oliveira conta que o site tem gerado uma resposta positiva. “Temos recebido bastante apoio por e-mail, não recebemos nenhuma crítica horrenda. Tem muito homem falando ‘groselha’, mas a gente já esperava isso. Nos apegamos aos comentários de mulheres nos elogiando e mandando sugestões, além de professores nos contando que estão utilizando o site em aulas”, revela. 

No Facebook, página ‘arruma’ músicas com letras machistas 

Em sintonia com as urgentes discussões sobre o machismo em diversas áreas da sociedade brasileira, diversas formas de posicionamento têm aparecido na mídia, especificamente no que se refere ao conteúdo de músicas. É o caso da página “Arrumando Letras”, que posta a correção de letras machistas no Facebook e já agrega mais de 254 mil pessoas. 

A moderadora da página é a advogada paranaense Camila Queiroz. Feminista declarada, ela conta que a empreitada começou por acaso, depois que o tema foi levantado em uma conversa com amigas. Na época, ela decidiu postar a correção da música “Vidinha de Balada” (dos versos “Vai namorar comigo sim/ Se reclamar cê vai casar também”), da dupla sertaneja Henrique e Juliano, em sua página pessoal. “Depois postei a correção de outra música em um grupo privado no Facebook. Lá a repercussão foi maior e os próprios membros me falaram para fazer uma página com esse conteúdo porque eles também queriam compartilhá-lo. A partir daí surgiu a ‘Arrumando Letras’”, conta. Arquivo Pessoal/Divulgação / N/A

ARRUMANDO LETRAS – Criada por Camila Queiroz, a página faz sucesso na plataforma 

Queiroz explica que a intenção é falar sobre letras machistas que muitas vezes passam despercebidas. “No início eu fazia frases pequenas, tentava ser mais sutil. Hoje a página tem outra configuração, faço textos maiores e debato mais duramente sobre o machismo que está contido ali. Vi a necessidade de ampliar a discussão a partir do retorno de mulheres que passavam por situações que estavam retratadas nas letras”, sublinha. Ela ressalta que a intenção é prestar suporte às mulheres, divulgando canais de ajuda como telefones para denúncia. “Por mais que tenha mudado a configuração, ainda tenho esse objetivo, que é focalizar no problema dos discursos e nas atitudes machistas, que a gente vê como normais”, afirma 

Ela destaca que hoje o projeto extrapola o próprio ambiente de página e se estende também a um grupo fechado, chamado “Arrumando Letras Entre Amigas”. Neste outro espaço, várias mulheres compartilham experiências, de forma mais particularizada. “É uma forma de ficar mais próxima das meninas que curtem a página, de entender melhor a situação delas, o que elas passam no dia-a-dia, de ver problemas com o machismo diferentes dos meus, mas tão ou mais complicados. É um aprendizado diário”, diz. 

Além da troca de experiências, o grupo tem participação ativa no conteúdo da página. “Falamos também de letras para amar, e isso foi uma ideia das meninas do grupo. Elas diziam que era muito triste só destacar músicas machistas; que seria importante ver também letras que nos representassem. Começamos a fazer isso também”, conta.

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