Mergulho no universo dos que vivem da escrita

Patrícia Cassese - Hoje em Dia
27/07/2014 às 07:12.
Atualizado em 18/11/2021 às 03:32
 (Ricardo Bastos)

(Ricardo Bastos)

O jornalista José Eduardo Gonçalves tem a firme convicção de que o livro inicia uma série. “O nosso acervo é fabuloso, até o momento são 65 gravações com autores diversos”, diz, referindo-se ao registro dos escritores que já passaram pelo projeto “Ofício da Palavra”, realizado no Museu de Artes e Ofícios, o MAO, na Praça da Estação, desde novembro de 2006.   O livro ao qual ele faz alusão é “Ofício da Palavra”, recém-lançado pela Editora Autêntica (192 páginas, R$ 29,90), e que traz uma primeira seleção de alguns dos melhores encontros – são 11 autores contemplados: Luiz Ruffato, Milton Hatoum, Ferreira Gullar, Cristovão Tezza, Bernardo Carvalho, Silviano Santiago, Ignácio de Loyola Brandão, Daniel Galera, Maria Esther Maciel, Carola Saavedra e Gonçalo M.Tavares.   Mas se processou a escolha entre tantos convidados de peso? “Bem, toda edição implica em escolhas. É duro cortar quando tenho um acervo tão valioso. Defini alguns critérios, que giram em torno da diversidade: de gêneros, de gerações, de regiões de origem. E, naturalmente, a atualidade e a pertinência do depoimento”, explica José Eduardo.   Com isso, o livro tem, por exemplo, um Ferreira Gullar (maranhense, poeta, 84 anos) e um Daniel Galera (romancista, paulista radicado no Sul, 36 anos). “É uma boa mistura. Tenho mineiros como Silviano Santiago e Maria Esther Maciel, que são também ensaístas, e um português como Gonçalo M.Tavares”, prossegue o jornalista, acrescentando que também priorizou, nesta primeira leva, autores que participaram do projeto até 2011 – “só o Gonçalo esteve em 2012”. A ideia foi valorizar as apresentações “mais antigas”, fazendo este resgate.   “É claro que é difícil deixar nomes de fora, mas pensei tenho agora um autor icônico como o Ferreira Gullar, posso deixar Adélia Prado e Ariano Suassuna para os próximos (volumes). Da mesma forma, se tenho agora o Daniel Galera, não cabe colocar o Michel Laub na mesma fornada, pois são da mesmíssima geração, melhor separá-los. E assim fui montando meu quebra-cabeças”. José Eduardo Gonçalves se lembra do primeiro evento, com Sérgio Sant’Anna. “Como se fosse hoje: 29 de novembro de 2006”.   Chovia torrencialmente. “Imagina, logo no primeiro (encontro)! Temi pela falta total de público, mas conseguimos atrair um bom número de pessoas. Foi como um teste para ver a receptividade ao projeto, e foi tão legal que, a partir de 2007, se instalou ‘pra’ valer”.   Cumpre levar que, à época, não havia esse “boom” de hoje, com feiras e encontros literários pelo país todo. “Hoje os autores são muito mais disputados, estes eventos tornaram-se uma fonte efetiva de renda para muitos. O que é muito bom, diga-se de passagem”.   E como todo projeto que se preze, o Ofício já viveu de tudo um pouco. “O Lourenço Mutarelli, por exemplo, saiu para passear e sumiu, só reapareceu na hora do evento. Foi um susto. Ele foi ótimo, mas deu um pouco de pane”, diverte-se.   Já com Gullar, uma espectadora pediu para fazer uma pergunta. Mas, ao receber o microfone, cantou o “Trenzinho Caipira” inteiro.   “O que fazer numa hora dessas?”, indaga ele, citando, ainda, outra “graça”, com Reinaldo Moraes, autor de “Pornopopeia”. “Um romance sensacional, mas é impossível abrir qualquer página sem achar termos chulos, sexo, drogas, loucura. É genial o que ele faz. Mas como todo autor lê trechos da obra ao final do evento, meu medo era: o que o Reinaldo vai ler? Mas ele foi de uma elegância fina, escolheu um trecho mais ameno, que não assustou ninguém”   Detalhe: o projeto segue firme. Em agosto, já há dois eventos agendados: dia 5, dois escritores premiados da nova safra: o mineiro Jacques Fux e a gaúcha Luisa Geisler, que faz aqui o lançamento nacional de seu novo livro, que, detalhe, ficará pronto três dias antes.   Um clipe para chamar de seu   Um dos clipes mais bacanas do cantor, compositor e instrumentista Affonsinho – o da música “OVNI” – se concretizou a partir de um presente. No caso, da produtora Cheesebread. “O Zé Renato, que era o dono, e me conhecia por ter uma banda de blues, disse que estava começando a empresa, precisava de divulgação e fez a proposta da troca”.   Mesmo modestamente achando não ter esse “poder de divulgação”, Affonsinho, feliz, topou a empreitada. “Me mostraram uma animação e achei divertida a ideia de ter um trabalho parecido. Não dei pitaco no desenvolvimento, mas fiquei muitíssimo agradecido”, diz.   Detalhe: depois de “OVNI”, Affonsinho – acredite! – ganhou – de outro amigo, Leo Alvim – mais um clipe, o da canção “Flores Pra Ela”. “Adorei! E ele, na verdade, fez uma espécie de DVD, com participações da Marina Machado, Vander Lee, Erika Machado, Chico Amaral, Mariana Nunes, Regina Souza...”. Na verdade, acabou sendo o registro de um show para uma pequena plateia, “mas numa casa ma-ra-vi-lho-sa, gigantesca, no alto de BH, e foi lindo demais”. “Um presentaaaaço! Som profissional de show, convidados especiais e seis videomakers profissionais nas câmeras captando as imagens”.   Detalhe: como ganhou tudo, Affonsinho, todo elegante, pontuou que seria indelicado colocar o DVD à venda. E bateu o martelo: “Vamos soltar os clipes no YouTube”. E não, não acabou. “Semana passada, recebi outro convite de um cara que está montando uma empresa de clipes. Como nós, independentes, nunca temos dinheiro para bancar estas produções, graças ao bom pai do céu aparecem essas permutas”.   Alexia Bomtempo foi outra a ser brindada com a multiplicação dos clipes: despretensiosamente, ela gravou nada menos que três em Nova York, a partir do disco “I Just Happen To Be Here”, calçado no repertório de Caetano Veloso. A ideia era gravar só “You Don’t Know Me”, mas tudo fluiu tão bem, que ela conseguiu realizar os três em uma semana. O primeiro foi “You Don’t Know Me”. O próximo, “It’s a Long Way”, estreia em setembro. “Está incrível! Não tínhamos ideias muito precisas e, um dia, o Pico amigo e parceiro de Alexia na iniciativa estava passando perto do Plaza Hotel e viu um Cadillac conversível, dos anos 60. E ficou louco”.   Pico foi conversar com o dono do carro (Morgan, um detetive aposentado de 77 anos), mas, lembra Alexia, “ele fez o maior jogo duro”. “Acabou que trocaram telefones e, no dia seguinte, liguei para o Morgan. Após 40 minutos de papo, consegui convencê-lo a dar uma volta com a gente por Manhattan para registrar imagens. Acabou sendo uma farra – todo mundo na rua tirava fotos – e o Morgan com um sorriso de orelha a orelha!”.   TRÊS PERGUNTAS PARA JOSÉ EDUARDO GONÇALVES   A) Todos os autores aqui reunidos foram êxito de público nas edições do projeto? Algum se destacaria pelo afluxo de pessoas de uma forma, não sei, talvez, que vocês mesmos, da organização, tenham se surpreendido?   Eventos literários não são, de modo geral, eventos de grande público – à exceção de feiras como a Flip ou de nomes midiáticos como (Ariano) Suassuna e Adélia (Prado). Se 30 pessoas se reúnem para ouvir um escritor eu já considero isso uma vitória. Mas é bom dizer que, em sua grande maioria, todos os nossos "Ofícios" contaram com uma plateia superior a 50 pessoas. No geral, temos um público cativo de umas 70 pessoas. Alguns eventos, naturalmente, vão muito além disso. (Ferreira) Gullar estava lotado, com gente assistindo até do 2º piso do museu. (Ignácio de) Loyola (Brandão) sempre traz um ótimo público. O Gonçalo (M. Tavares) foi genial, pois fizemos uma oficina literária com ele, à tarde, e depois tivemos o evento à noite, com quase 100 pessoas. Êxito total, pois, repito, priorizamos a qualidade do autor, e não o seu prestígio comercial. Quando eu trouxe o Daniel Galera, ele ainda não era o que é, não tinha lançado o "Barba Ensopada de Sangue", não era colunista d’"O Globo", nada disso ainda. Eu aposto muito em gente que está despontando, tenho este cuidado de valorizar a nova literatura, ao mesmo tempo que não deixo de valorizar os nossos autores mais festejados e aclamados. Não tenho medo da casa vazia, apesar de achar que é desperdício um autor não ter quem o escute. Arrisco, isso faz parte do meu ofício. Uma curiosidade: é sempre excelente quando o autor é um misto de outro profissional, especialmente quando atua nas artes plásticas ou na música, áreas que têm muita visibilidade. O Nuno Ramos foi assim. O Arnaldo Antunes idem. Eles atraem públicos diversos e também mais jovens. E falaram coisas muito legais. Eles são nomes que eu pretendo resgatar em um volume futuro.   B) Além do "sumiço" do Lourenço Mutarelli, citado no texto, pode nos contar outro episódio que ficou na memória, comovente, por exemplo?   Momentos comoventes, já tivemos muitos. Como não se comover com Gullar falando do cheiro do jasmim ao andar pela rua à noite e de como isso o leva a escrever um poema? Como não lembrar de Bartolomeu Campos de Queiros, seis meses antes de morrer, nos contando sobre a relação com a mãe e soltando frases como "o homem é do tamanho da sua fantasia"? Pessoalmente, o que me comove são as declarações sobre as relações de cada autor com a escrita. Quando eles definem o que os faz escrever. Eu choro em silêncio ouvindo o que eles dizem. O Gonçalo conta uma história, que está no livro, do dia em que ele, em um hotel, depois de escrever durante horas, sentiu uma coisa estranha nos pés, era uma inundação. Ele tinha deixado uma torneira aberta e não percebeu que, enquanto escrevia, o quarto se enchia de água, molhando mala, roupas, tudo. Essa entrega absoluta à escrita me comove, profundamente.   C) Bem, você diz que esse pode ser o primeiro de vários volumes sobre o projeto... Isso é algo que está se delineando? E como está o projeto neste segundo semestre? Qual o público perfil, em termos de faixa etária, grau de instrução e mesmo sexo?   Tenho a firme convicção de que este livro inicia uma série. O nosso acervo é fabuloso, até o momento são 65 gravações com autores diversos. Desde que o iniciei, conto com total apoio do Instituto Cultural Flávio Gutierrez, na figura encantadora da Angela Gutierrez, que entendeu a importância de promover atividades culturais que pudessem convergir com o espírito da instituição. O foco da museu e do ICFG é a memória do patrimônio cultural brasileiro. O nosso projeto busca uma reflexão sobre o fazer literário, sobre o ofício da escrita, e ao fazer esta reflexão, ao expor o autor e os processos que dão vida à sua obra, de alguma forma o protegemos e preservamos. emos um foco grande na formação de novos leitores. Queremos que o leitor, inclusive o potencial leitor, ao se aproximar do autor, ao dialogar com ele, tenha mais elementos que o inspirem a buscar a leitura como companhia de vida. Se em cada evento conquistamos um novo leitor, minha missão está cumprida. Por isso valorizamos o público que vem das escolas de letras, estimulo muito que os professores levem seus alunos, pois acho que, mais que estudar teorias literárias, os jovens precisam descobrir o prazer da leitura. Nunca fiz uma pesquisa sobre este público. Cada autor tem seu público, e há aquelas pessoas que se interessam pela literatura em geral, estes estão sempre presentes. O projeto segue firme no segundo semestre. Em agosto temos dois eventos. Dia 5, dois escritores premiados da nova safra: o mineiro Jacques Fux e a gaúcha Luisa Geisler, que faz aqui o lançamento nacional de seu novo livro (fica pronto três dias antes do evento). Ambos ganharam prêmios muito importantes nos últimos dois anos. E no dia 26 do mesmo mês teremos o romancista João Anzanello Carrascoza.

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