Re-existência cultural: corredor da Zona Leste ganha fôlego e se reconfigura

Lucas Buzatti
lbuzatti@hojeemdia.com.br
09/07/2017 às 08:39.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:27
 (Maurício Vieira)

(Maurício Vieira)

“Notícia quente (da semana gelada): a Gruta vai reabrir!”, dizia o post publicado pelo cantor Marcelo Veronez na última terça-feira, no Facebook. Na foto, o emblemático quadro negro da Gruta apontava para o “1º episódio” do que virá a ser a reocupação do espaço – um dos mais importantes para a cultura independente de Belo Horizonte. 

Mas agora a Gruta volta com novas companhias artísticas no bairro do Horto. Há duas semanas, foi aberta, também na rua Pitangui (onde funciona, há quase 20 anos, o Galpão Cine Horto), a casa Velma, braço “balada” do Zona Last. Na ativa desde o ano passado, o Zona fica um quarteirão acima, na esquina das ruas Pouso Alegre com Capitão Bragança (onde também funciona o Espaço 171). Pelo cruzamento desses cinco espaços culturais é possível perceber que o chamado Corredor Cultural da Zona Leste vive interessante reconfiguração, cheia de coletividade, frescor artístico, diversidade e ativismo.

Nessa guinada da Gruta estão envolvidos, além de Veronez, o coletivo de artes cênicas Toda Deseo, o artista Wagner Alves (a Vanira, do grupo de teatro Obscena Agrupamento) e o professor de dança de salão Zé Lelé. “Esse espaço está ocupado desde 2001, dentro dessa ideia de ocupação artística. Nesses 16 anos, houve um monte de momentos diferentes até chegar nesse boom dos últimos três anos e virar referência para a noite da cidade”, relembra Veronez.

Administrada de forma aguerrida por Joyce Malta e Admar Fernandes nos últimos anos, a Gruta fechou em março passado, deixando “órfãos” artistas e consumidores de cultura de BH. “Certa vez, perguntei a uma amiga porque ela gostava tanto da Gruta e a resposta foi: ‘porque lá você pode dançar do seu jeito, sem ninguém te olhando’. Pensei: ‘mas isso não é uma questão básica?’ Infelizmente, não”, reflete Veronez. “A programação estava sempre ligada aos movimentos da cidade. Festas das pretas, das LGBTQI, das feministas. A Gruta é e vai continuar sendo espaço livre, diverso”, completa Rafael Lucas Bacelar, da Toda Deseo, grupo que teve a Gruta como “incubadora”.

Vanira lembra que a casa sempre foi local de fomento à cultura independente da cidade. “A Gruta é lugar onde artistas podem arrecadar algum dinheiro para levantar seus projetos, e assim também foi com o Obscena. Há 16 anos, esse espaço está nas mãos de artistas independentes. Isso é muito raro”, frisa. 

Foco na arte

A reocupação quer, portanto, recuperar a Gruta como um lugar para além da festa. “Continua sendo um espaço festivo, de celebração, mas também de fomento à arte”, salienta David Maurity, da Toda Deseo. “Queremos olhar para a Gruta e pensar a possibilidade de ocupá-la em todos os horários, e não só à noite”, completa Bacelar, lembrando a importância de um local de ensaios e apresentações para a Toda Deseo e demais envolvidos. 

Para Thales Brener Ventura (Toda Deseo), a reabertura da Gruta reforça a vocação cultural da região, solidificada por espaços pioneiros, como o Galpão Cine Horto e o 171 (sede do grupo homônimo que funciona de forma autônoma há mais de 10 anos).

“Quando fizemos o espetáculo ‘Nossa Senhora do Horto’ e caminhamos por essas ruas, vimos que esse corredor cultural já existe há anos, com bares e espaços que estavam aqui muito antes de nós. O que estamos fazendo é ampliando as possibilidades de ser e estar aqui”, afirma. “Nas paredes da Gruta tem cabelo, pele, sangue e suor de todos nós. E vai ter ainda mais”, finaliza Veronez.

Reformas

Para reabrir a Gruta, o agrupamento precisa de R$ 10 mil para realizar reformas emergenciais de elétrica, segurança e acessibilidade. O valor será conseguido através de uma campanha de financiamento coletivo que vai oferecer diversas contrapartidas. Para colaborar e saber mais informações, acesse facebook.com/todadeseo.Bruna Brandão / Divulgação / N/A

Velma traz ‘balada’ complementar ao ‘esquenta’ do Zona Last

Bailarino de formação, Pedro Romero foi para a Alemanha dançar até que um acidente interrompeu seus planos. Na volta a Belo Horizonte, deparou-se com uma cidade diferente. “Vi uma nova forma de consumir a noite, de estar na rua, o que também é reflexo de movimentos culturais que já vêm acontecendo na cidade, como o Carnaval de rua, a Praia da Estação, a Masterplano e a própria Gruta”, relembra. “Eu já morava na rua Capitão Bragança e comecei a criar uma relação com o entorno. Achava que a região tinha uma potência cultural muito grande para além da Centro-Sul”, diz.

Diante desse novo cenário, Romero alugou a loja que leva o último número da rua Pouso Alegre. “Daí veio essa brincadeira com o last, o último”, explica o proprietário do Zona Last, bar que desde o ano passado virou referência no que toca a ocupação festiva e diversa do espaço público. “A coisa se configurou depois do Festival de Cenas Curtas do Cine Horto. A partir daquele momento, o Zona virou, naturalmente, um ‘esquenta’ para a Gruta”, conta. “E aí o Zona foi se transformando para além do que eu imaginava. Nunca pensei em fazer um ‘rolê’ gigantesco”, afirma, lembrando que o boom trouxe problemas com o entorno. 

Na vizinhança

“O fato de ser morador do bairro interfere diretamente. Não é só a rua do bar, é a minha rua. Então, sempre foi uma questão para mim educar quem vai ao Zona. Ao mesmo tempo, ‘finco o pé’ porque tenho alvará, tudo certinho, e sei que as investidas contra o bar têm relação com a homofobia”, lamenta, ressaltando que, apesar de não ter um recorte de “balada LGBT”, o Zona é um espaço de respeito à diversidade. 

“Sempre me perguntava: ‘o que traz uma pessoa até aqui?’ E a primeira coisa é o fato de se sentir livre na rua. É uma rua meio fechada, que te acolhe, te abraça, mostra que é possível transitar pela cidade e ocupar espaços diversos”. 

Para escoar o público do Zona Last e oferecer uma casa com outras formas de entretenimento, Romero abriu, há duas semanas, a Velma. “É uma balada diferente, num lugar fechado, que tem uma forma de controle maior”, explica. “Também parte de uma vontade artística minha. Uma casa fechada possibilita outras formas de intervenção artística. Tenho um fascínio muito grande pelos cabarés. A Velma ainda não é um cabaré, mas chegaremos lá”, diverte-se, ressaltando que, na Velma, só trabalham homens e mulheres transexuais. 

“São espaços que carregam essas bandeiras, assim como a Gruta, que volta agora menos solitária”, sublinha. “Queria era pintar esse asfalto de vermelho, do 171 até o Cine Horto. Um corredor mesmo, sabe?”, sonha Romero. (LB)

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