Ronaldo Fraga: 'o papel do criador é tentar enxergar poesia no meio do caos'

Vanessa Perroni - Hoje em Dia
06/07/2015 às 06:33.
Atualizado em 17/11/2021 às 00:46
 (Wesley Rodrigues/Hoje em Dia)

(Wesley Rodrigues/Hoje em Dia)

Integrante de um restrito grupo de estilistas que lança mão de suas coleções para contar histórias relevantes de nossa cultura, o mineiro Ronaldo Fraga acaba de lançar a segunda edição do livro “Ronaldo Fraga – Cadernos de roupas, memórias e croquis”. Zuzu Angel, Nara Leão, Lupicínio Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Pina Bausch e Athos Bulcão são alguns dos nomes que inspiraram o estilista em suas 36 coleções reunidas na obra.

Em entrevista ao Hoje em Dia, o estilista, que trabalha suas peças de forma democrática às formas de mulheres e homens comuns, mostra um discurso afiado quanto ao setor têxtil no Brasil, e os assuntos que têm reverberado na mídias sociais recentemente.

O país atravessa uma crise econômica de proporções alarmantes, e o setor do vestuário tem sido afetado. De que maneira esse panorama reverbera no universo da moda e, em particular, na sua grife? Que soluções a grife Ronaldo Fraga está buscando para driblar as intempéries?

A indústria têxtil, de moda e confecção começou a se fortalecer no Brasil no final dos anos 70. Então nós pegamos todas as crises. Crise do final d0 governo Geisel, Figueiredo, Sarney, Collor. Curiosamente, é uma das indústrias que sempre esteve muito fragilizada pelas crises que o país enfrentou e ela sempre superou. Nós estamos falando do segundo setor que mais emprega no país, que só perde para a indústria de alimentos. Só que ela vem numa queda vertiginosa, e isso aconteceu com a indústria do prêt-à-porter do mundo, com a migração da indústria para os países asiáticos. E nessa briga, nessa queda-de-braço com os países asiáticos, nós estamos perdendo de mil a zero, pois não temos vocação para produção em série. Nosso produto é caríssimo. Produzir no Brasil é caro. A última coisa que ainda nos resta é o fortalecimento da chamada indústria criativa. Os países europeus investiram nessa direção e até na África do Sul, na Cidade do Cabo você vê isso muito claro.

O país saiu dividido das últimas eleições, e as redes sociais viraram um campo minado, de guerra. Ainda hoje, vemos os ânimos exaltados. Você acompanha a cena política? Como avalia o cenário atual? Ousaria apontar soluções para o país?

Tem duas formas de olhar essa situação. Uma extremamente pessimista que é de jogar uma pá de cal e começar tudo de novo. A outra é entender que isso é um processo que estamos vivendo, de uma cultura e educação política que nós nunca tivemos. E como todo processo de educação, é difícil e dolorido. Achei fantástico como as discussões foram para as mesas. Não vou falar da qualidade dessa discussão, mas elas nem aconteciam. Então eu acho que as cortinas estão caindo, os muros estão caindo. Espero que tenhamos um futuro político, de uma geração para daqui dez ou 15 anos que dê um passo a frente. Porque se compararmos o que temos hoje, com o que tínhamos nos anos 70, ela deu uma caminhada sem dúvida.

Você sempre muda a fachada da sua loja. Desta última vez convidou o grafiteiro Nilo Zack, conhecido pelos desenhos que faz de um menino (sobrinho dele) pintado de palhaço, e que estão espalhados por Belo Horizonte. Você está sempre antenado ao que acontece na cidade?

Tem um livro do Paul Smith, que é um estilista inglês, que o título é ótimo. Ele fala ‘você pode encontrar inspiração em qualquer lugar, se não enxergou, olhe de novo’. Então esse lugar do cotidiano, da vida das pessoas, é o material mais fértil, do que simplesmente falar que vou fazer uma coleção inspirada na deusa grega, ou na poderosa que está chegando em Miami. O papel do criador ligado às artes visuais, ou que estabeleça alguma forma de diálogo com a arte visual, é tentar enxergar poesia no meio do caos. É tentar enxergar poesia no terreno árido. E eu acho que a moda é um ótimo anzol para isso.

As redes sociais nos mostram uma grande intolerância religiosa entre as pessoas. Como acompanha e percebe essa “guerra”?

A sensação que eu tenho é que jogou um dado e caímos na casa da caveira. E lá estava escrito volte dez casas. E dez casas para trás era outra casa da caveira, então voltamos 20. Porque não é só na questão religiosa, em todos os sentidos tem uma coisa de um retrocesso. Eu até coloquei um post nas minhas mídias sociais que me surpreendeu, em poucos minutos o número de acessos e compartilhamentos. Eu contava a história de uma situação em que eu estive, em 2010, em Feira de Santana. Naquele calor, eu passava em uma esquina e tinha uma senhorinha de terno de poliéster cinza fritando acarajé. Passava outra quadra, e estava outra senhorinha com aquela roupa. O meu anfitrião disse que o prefeito, na época, do Partido Social Cristão – e o aumento das igrejas pentecostais na região era uma coisa absurda – então instituiu que acarajé vendido por baiana paramentada de forma tradicional era acarajé do diabo. Então muitas delas tiveram que aderir àquela roupa para garantir o sustento da família. Eu vi aquilo e fiquei chocado. Só que quando desço em Porto Seguro, que é o aeroporto de entrada para todo o Sul da Bahia, está lá ‘Acarajé de Deus’. Agora essa pedrada na cabeça da menina, a morte do médium. Não são casos isolados. E isso agrava em um momento que nós vivemos a época do ‘Me, myself and I’, quer dizer você olha só para o próprio umbigo. Os seus problemas vão até onde os seus filhos estão. Por outro lado, as pessoas acham bom eu falar isso. Mais ou menos, porque você ter opinião hoje é delicado.

A discussão sobre a diminuição da maioridade penal também tem dividido a opinião pública. Qual a sua posição sobre essa questão?

Sou contra. É matar formiguinha enquanto a manada de elefantes está destruindo a plantação. Mas isso demanda uma discussão maior, porque não é simplesmente aprovar ou não aprovar, mas entender ou localizar a origem desse problema. Hoje a gente vive outra peste, uma onda terrível no país e que estamos fingindo não ver, que é o crack, por exemplo. Crianças de dez ou 12 anos roubando por conta do crack, e o poder público não conseguiu fazer nada e não tem nenhuma iniciativa no país, que você cite, que tenha conseguido segurar a onda do crack. Então isso é um dos elefantes que está passando livremente nos campos do Senhor.

O São Paulo Fashion Week reduziu bastante nos últimos anos. O local mudou. Ele saiu da Bienal, no Parque do Ibirapuera. Muitas marcas e estilistas optaram por sair do evento, e outras apresentam suas coleções em formatos alternativos, como vídeos. Com uma experiência de 15 anos no evento, qual a avaliação você faz desse contexto?

Uma semana de moda no país acaba sendo reflexo do comércio dessa moda no mercado. Então houve um momento de euforia e de investimento. Se você pensar nas grandes indústrias ligadas a moda, seja cosmético, tecelagem, são muito poucas hoje no país. Você vai chegar a cinco ou dez, no máximo. E o evento em si precisa ser mantido por esses patrocinadores. Hoje houve uma retração na exportação com a desvalorização do real. Fala-se em voltar, mas o mercado lá fora está super desconfiado em comprar de brasileiro, porque sabe que o brasileiro estará sempre a mercê de uma política econômica, e pode ser que ele não receba as peças. Então é uma situação muito difícil. Essa retração do São Paulo Fashion Week mostra a realidade. Lindo, maravilhoso a Bienal, morro de saudade da Bienal, mas me fala qual lugar do mundo você chega e os desfiles acontecem em um prédio como o da Bienal. Não tem. Os estrangeiros chegavam aqui e ficavam ‘de cara’. Em Nova York eram em tendas. Londres também é de uma forma muito precária. Em Paris não existe uma sede. É bom repensar, porque isso faz parte de um desafio. De encontrarmos um jeito nosso de pensar moda, de falar moda, de criar moda, de comercializar e de deixar a marca do país na moda que é produzida por aqui.

Você chegou a receber uma proposta de compra da sua marca. Por quê não aceitou?

Mais de uma, aliás. Primeiro porque nunca chegamos num acordo de autonomia. Na hora da venda está tudo muito bom, tudo muito bem. Mas tem uma história que a minha marca, muito mais do que uma forma de sustento, ela é pra mim o meu canal de comunicação com o meu tempo. E eu tinha pesadelos de imaginar – como aconteceu com praticamente todos que venderam a marca no país – de ter que fazer a calça x da estação, uma saia x da estação, porque é isso que vai encher o caixa. Então como você faz para encher esse caixa? Trabalho muito e cada vez mais em outros caminhos que não é a roupa, para poder justamente mantê-la onde ela está.

Qual a melhor forma da moda estar a serviço das pessoas?

Quando ela consegue se libertar da roupa. Não ficar presa ao vetor econômico e se assume mais como vetor cultural. É esse o papel que, de certa forma, ela faz no Japão. É esse o papel que ela faz nos países nórdicos, sobretudo a Holanda, é o que poderia acontecer no Brasil.
 

“Trabalho para que a moda se liberte da roupa, porque esse é o lugar que ela é mais interessante. Com desenvoltura, ela estabelece diálogo com outras frentes. Acaba formando pensadores, opinião e outros desejos que não são a roupa da novela. E que não é o comprimento da estação, são outras coisas”


“Em 2009, uma pesquisa falava que em 15 anos a indústria têxtil brasileira estaria extinta, e nós não teríamos mais fábricas de tecido. Isso aconteceu em um processo muito mais rápido. O país que já teve a melhor fibra de algodão do mundo, não tem mais. Acho isso lamentável”

 

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