"Temos uma garra muito grande", diz Raquel Hallak coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes

Paulo Henrique Silva - Hoje em Dia
Hoje em Dia - Belo Horizonte
04/01/2016 às 07:29.
Atualizado em 16/11/2021 às 00:52
 (Frederico Haikal)

(Frederico Haikal)

O cinema é conhecido como uma fábrica de sonhos, mas o que a Mostra de Cinema de Tiradentes proporcionou à cidade histórica mineira é bastante real: há 20 anos, quando a 1ª edição saiu do papel, Tiradentes não tinha sala de exibição. Nem telefone público ou agência bancária. O crescimento do festival, hoje uma importante plataforma do cinema independente brasileiro, foi acompanhado pelo município do Campo das Vertentes.

Coordenadora do festival, que abre sua 19ª edição no dia 22, Raquel Hallak lembra que chegou a ser vista com desconfiança por políticos locais. “Trabalhar numa cidade pequena precisa ter um cuidado político também, porque um evento como esse impacta diretamente na escolha dos votos. Antes eles tinham uma grande preocupação de que eu tivesse algum interesse político”, recorda Raquel, que está à frente de mostras importantes também em Ouro Preto e Belo Horizonte.

Ambições políticas, ela garante, não tem. Mas, como uma das principais produtoras culturais do país, torce para que passe logo a situação desfavorável no setor, que sofre com a escassez de recursos. Pela primeira vez na história do evento, as confirmações de patrocínio só aconteceram em dezembro. Mas apesar do recuo dos investimentos em cultura, Raquel não desiste. A receita é simplicidade e criatividade.
 
Um dos pilares do sucesso da Mostra de Tiradentes é o seu recorte, servindo de plataforma de lançamento para a produção independente no país. Como se construiu essa ideia?

A Mostra foi criada para ser aliada do cinema brasileiro, e chegar a esse foco foi um processo muito natural. Foi um recorte de uma observação que vem desde a 1ª edição. (A Mostra de Cinema de) Tiradentes nasceu em 1998, num momento em que a gente não sabia se o cinema brasileiro iria de fato vingar. Presenciamos o lançamento da Lei do Audiovisual, em 1995, e nossa programação incluiu aqueles primeiros filmes que começavam a ficar prontos. Não houve seleção. Mas desde o princípio nossa intenção foi fazer uma coisa diferente do que já existia, especialmente numa cidade que não tinha sala de cinema. O debate conceitual não era só de filme, mas também o cortejo comemorativo, o teatro na rua, o pessoal declamando poesia... Levamos o Wally Salomão, que deitou na praça e recitava poesia para a galinha. A gente viu ali todas as manifestações da arte, enquanto os outros festivais de cinema estavam focados em premiação. Quando chegamos à 9ª edição, tivemos a temática do primeiro cinema, com realizadores que, mesmo não sendo jovens, estavam fazendo o seu primeiro filme, já que produzir era caríssimo. Essa novidade não estava relacionada a uma geração ou idade, mas à vontade de fazer cinema. Na 10ª há uma renovação e, na 11ª, isso se consolida, com pessoas que começaram na Mostra fazendo oficinas, passaram para os curtas-metragens e que, naquele momento, estavam inscrevendo longas. E o bacana é que a Mostra não negou essa faceta, que poderia dar certo ou não. E é assim até hoje.
 
Quais são os caminhos para se sobreviver por duas décadas num cenário tão incerto como o da cultura, promovendo anualmente três grandes festivais de cinema em Minas Gerais?

É um desafio permanente, em várias vertentes. A gente tem o desafio diário de manter uma empresa que praticamente vive de suas realizações culturais. É uma coisa insana ter uma empresa que depende exclusivamente de patrocínio. E a forma como esse financiamento acontece – baseado em leis de incentivo, calcadas no lucro das empresas investidoras... Num país em crise política e econômica, a cultura acaba sendo a mais afetada, porque as empresas não estão tendo lucro. E num estado como Minas Gerais, em que as empresas são siderúrgicas e mineradoras, que vivem outra crise depois do ocorrido em Mariana, a situação é mais difícil.

Como evitar que os inevitáveis cortes de orçamento afetem qualidade?

Conseguimos atravessar 2015 sem abrir mão da qualidade, com o mesmo propósito. Mesmo com alguns ajustes de valores, os patrocinadores têm continuado. Pensando em 2016, até o dia 17 de dezembro ainda não tínhamos fechado os patrocínios, o que faz a gente se perguntar porquê todo ano temos que começar do zero. Falta uma maturidade no discurso da classe cultural, de pensar a cultura como um todo, não só um sistema governamental, e sim em novos modelos de gestão. A gente está enfrentando, pela primeira vez, a ausência da Lei Estadual (de Incentivo à Cultura), impactando, em 2016, numa perda de R$ 1 milhão – nos últimos anos, tivemos a aprovação de R$ 500 mil para Tiradentes e R$ 500 mil para Ouro Preto. É um impacto muito forte no orçamento de um evento que exige uma infraestrutura, como Tiradentes e Ouro Preto, que é bem diferente de um evento na capital, devido ao custo logístico, de deslocamento, de adequação dos espaços para receber a programação... E o que a gente faz? Avança ou diminui a quantidade de filmes e oficinas? Ficamos à espreita, mas sempre com aquela expectativa de um ato positivo, já que temos uma garra muito grande. Nós inauguramos uma maneira de fazer festival diferente. Hoje a gente tem um programa consolidado, em que o coletivo é que está ajudando a construir.

A Mostra de Tiradentes, por ser realizada exatamente na mudança do ano fiscal, é sempre a que mais corre riscos não é verdade?

A gente já termina uma edição sem saber se ela vai ser lucrativa, se vai pagar as contas no final. Isso até veio nos impulsionar a não fazer apenas a Mostra de Tiradentes, porque, se ela der prejuízo, como iremos sobreviver? De vez em quando a gente faz um evento empresarial para cobrir a questão cultural. Nossos patrocínios são muito negociados para os três festivais conjuntamente. O que a gente vê se anunciando é que vamos ter cortes. Essa negociação de corte pode ser para Tiradentes, para Tiradentes e Ouro Preto ou para os três eventos. Pela primeira vez eu não tenho o panorama de um planejamento anual de 2016, que os nossos eventos requerem ter. Nossa ideia é: vamos fazer Tiradentes. Se confirma um patrocínio, a gente concentra tudo em Tiradentes para ela se viabilizar. É a primeira vez que o patrocínio está se firmando ou não no mês de dezembro. Ou seja, a um mês do maior evento do cinema brasileiro. É uma coisa que faz a gente ficar atônito, principalmente por sermos produtores culturais independentes. Não estamos atrelados a uma instituição nem a governos.

As prefeituras que recebem os festivais, assim como outros eventos culturais, poderiam participar mais diretamente com recursos?

As prefeituras estão tão quebradas... Já estou tão calejada de trabalhar com prefeitura que, se ela não atrapalhar, eu acho que já está ótimo. Já teve um tempo em que a prefeitura entrava com recurso, oferecia vantagens para você levar o evento cultural para lá. Fazemos um festival que dialoga com turismo, pois ninguém vai para assistir a um filme apenas, permanecendo no lugar. A gente vê o impacto na economia da cidade de forma imediata. Com eventos anuais e consecutivos você têm prontamente um investimento.
 
A cidade como um todo se beneficia também, especialmente os microempresários.

O que fizemos em Tiradentes, também tivemos em Ouro Preto. Em Tiradentes, eram 500, 700 leitos. Eu lembro que a gente trabalhava as pousadas com três quartos e aí eles alugavam os quartos da casa. Hoje a gente tem mais de 5 mil leitos com opções para diversos públicos, de diversas condições financeiras. A perspectiva que a gente sempre trabalhou foi a do comerciante local. Se o evento permitir que se crie ali um calendário permanente, o investimento dele terá retorno. Já foi o tempo em que as prefeituras tinham seus deputados, as suas emendas, seus interesses, um orçamento, quando se indagava o que poderia ajudar para levar o evento para a cidade. Quase 20 anos depois, em Tiradentes, a gente que paga para fazer o evento.
 
Concorda que ainda falta muito o que aprimorar nessa relação com as cidades-sede, especialmente na parte de infraestrutura?

Foi recentemente que Tiradentes passou a implantar a nota eletrônica. A Mostra foi o primeiro evento a exigir nota fiscal dos estabelecimentos, há quase 20 anos, por que nem isso tinha. Quando chegamos em Ouro Preto, eram 1.100 leitos. Tinha um festival de jazz lá, mas as pessoas voltavam (para dormir em suas próprias cidades após as apresentações), não tinha um impacto econômico na rede hoteleira. E os restaurantes tinham funcionamento apenas diurno. E é a cidade histórica mais visitada no Brasil. O festival de Tiradentes foi responsável por levar telefone público, banco... A cidade foi correspondendo, mais ou menos como o case de Gramado, mas ainda é uma cidade de 5 mil habitantes. Se você pensar no dia-a-dia da cidade, a Mostra é impactante, em todos os sentidos. Tiradentes já tem o que oferecer na área gastronômica, hoteleira, mas na infraestrutura física não. A Mostra é quem organiza o trânsito, limpa a cidade, monta a infraestrutura, que é muito cara para nove dias de programação. O município não tem um centro de convenções. Atualmente está construindo um plano diretor, pensando nessa evolução e, nos próximos anos, talvez tenhamos uma efervescência de investimentos mais consolidada em Tiradentes, principalmente.

A 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes transformará a cidade histórica mineira na capital do cinema brasileiro, entre os dias 22 e 30 de janeiro, com exibição de filmes inéditos, debates e homenagem ao cineasta Andrea Tonacci
 

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