Trevas animadas: festa Decades reúne cena gótica de BH

Hoje em Dia - Belo Horizonte
17/11/2017 às 17:09.
Atualizado em 02/11/2021 às 23:45
 (fernando prates/divulgação)

(fernando prates/divulgação)

No vocabulário da cultura pop, poucos termos foram tão gastos quanto “gótico”. Diante de um longo compêndio de interpretações equivocadas, o sujeito que de alguma forma se identifica com este adjetivo corre o risco de escutar sinônimos que elucidam ainda menos a questão, como “deprê”, “dark”, entre outros. Mas o mundo é bem maior do que aquela pinta no rosto do Eri Johnson, o ator que representou um personagem “gótico” em uma novela global no início dos anos 90 e fez o desfavor de eternizar alguns dos clichês que contornam esta cultura. 

Pela vastidão de significados e práticas que envolvem o gótico, há muito fervilha em Belo Horizonte uma série de eventos que comemoram música, estilo e comportamento. Talvez a maior expressão desta questão hoje, na capital mineira, seja a festa Decades, que reúne fãs do gênero desde 2011 e tem mais uma edição marcada para hoje, no Matriz. Organizada por Rogério Marcus, também DJ do evento, a festa continua uma espécie de tradição, carregando a vela que ilumina trevosidades festivas anteriores, como a Jus Noctis e a Penumbra. 

“Fizemos a primeira edição com algo entre 50 pessoas e desde então a festa vem crescendo e ganhando espaço”, lembra Marcus, que há tempos milita por esta cultura. “Tive contato com pelo menos duas gerações de pessoas com afinidade pelo gótico nesse movimento que remonta às festas do Henrique de Souza, que discotecava com vinis no Paco Pigalle e outros espaços. Essa onda deu origem a um movimento que por mais de uma década teve sua sede no Jus Noctis e que agora deságua na Decades, em uma nova onda, mantendo nas pistas as vertentes mais obscuras e densas do rock alternativo dos anos 80".

Como bem lembra Marcus, a capital mineira sempre teve público para os movimentos da cultura alternativa “e os agregados culturais e ideológicos de seus diferentes gêneros. Basta lembrar a força que o metal teve aqui nos anos 80”. Assim, BH sempre foi rica em músicos e poetas, o que é um solo favorável à proliferação da cultura do Mal-do-Século entre jovens e sua bagagem sonora e literária”, acredita. 

O termo referido por Marcus é central para entender as afluências da cultura gótica. Se refere ao também chamado “spleen”, espécie de questionamento subjetivo que acometeu artistas na alvorada do século 20 e se estendeu como baliza sentimental para o restante dos tempos. “O gótico tende a ganhar personalidades com inclinação para a introspecção e uma certa melancolia, além de sensibilidade acima da média e uma visão de mundo um pouco mais pessimista. É gente que lê um Augusto dos Anjos e se encontra contemplado por esse tipo de literatura. No século 20 e 21, com a cultura pop, o gótico se pluga nas caixas de som, fica “elétrico”, ganha expressão na densidade do rock. É o punk triste, por assim dizer. Você passa a ter o goth rock, o pós-punk e outros gêneros”. Mas Marcus faz questão de sublinhar o caráter democrático da festa: “Ela herdou a tradição das festas góticas, mas ficamos felizes em constatar que tem um público bem diverso”.

Bandas como The Us carregarm a herança do gótico em BH

Musicalmente, o gótico permeia muitas bandas do final dos anos 70, como Joy Division, The Cure, Sisters Of Mercy, entre outras. Logo no início dos nos anos 80, bandas do Brasil, como Hojerizah e Arte no Escuro, e de Belo Horizonte, como Último Número poderiam ser ajustados à cultura gótica, com suas letras densas e românticas, indumentária de roupas escuras e sonoridade mais sombria. 

Já nos anos 2000, seria possível pensar em uma espécie de revival do gótico e do pós-punk –termos que por vezes se entrelaçam. “Tivemos algumas bandas– Interpol, Editors– que beberam na fonte e modernizaram o estilo, misturando com o próprio indie, por exemplo, o que o tornou mais acessível. A estética obscura e introspectiva do estilo diz muito, tanto no instrumental, quanto nas letras, que representam dilemas existenciais, angústias, enfim, sentimentos comuns a todo ser humano”, diz o músico Lucas Nascimento.

Ele mesmo é um representante atual desta música, pilotando a banda The Us. “Começamos em 2011, amparados justamente nesta praia”, diz. “Recordo que conheci a Venus (vocalista do grupo) em um grupo de compartilhamento de música no Facebook e nossas afinidades eram pautadas fortemente em bandas como Cocteau Twins, Bauhaus, Joy Division, Siouxsie, mas não só. Algumas pessoas se referem ao The Us como gótico, mas seria raso, porque também bebemos em outras fontes como o dream pop e o shoegaze”, explica Nascimento.

Citando a Decades como exemplo de espaço para a manifestação do estilo na cidade, Nascimento sublinha o caráter abrangente do gótico. “Tem mais a ver com um estado de existência e determinadas afinidades estéticas, sejam literárias, musicais, conceituais. Tem muita gente hoje em dia que se diz gótico só porque veste preto, e isso é o de menos”.

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