Para coordenador do Procon Assembleia, consumidor está desesperado

Leida Reis - Hoje em Dia
14/03/2016 às 07:43.
Atualizado em 16/11/2021 às 01:47
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

Cuidar dos direitos do consumidor deixou de ser a única função dos Procons. A crise trouxe situações extremas vividas por pessoas superendividadas. Elas chegam para reclamar com humor bastante alterado, e muitas vezes o que se constata é que não estão conseguindo pagar as contas.

Por outro lado, às vésperas do Dia Internacional dos Direitos do Consumidor, comemorado amanhã, as empresas continuam lesando, confiantes na morosidade da Justiça. As cobranças indevidas seguem em primeiro lugar.

Se é verdade que temos o melhor Código de Defesa do Consumidor do mundo, por que ele não consegue inibir as irregularidades das empresas?

Os direitos foram materializados com o Código, mas a gente percebe que a final punição pela fraude ou descumprimento do contrato tem que pesar no bolso do empresário. Esse ponto ainda deixa a desejar no Brasil.

Por exemplo, temos uma ação tramitando na Justiça por dano coletivo cometido por duas grandes empresas de telefonia. Perdura há 10 anos. Não tem solução. Outro exemplo: 90% das multas que são aplicadas por todos os Procons são ‘judicializadas’, as empresas recorrem e não há ação do Estado.

Então, também o direito do consumidor esbarra na morosidade da Justiça?

Sim, as empresas sabem disso. Passados 54 anos da mensagem do presidente americano John Kennedy, enviada ao Congresso, estabelecendo os direitos do consumidor, as empresas continuam acreditando na inércia do consumidor e na demora do Judiciário.

As cobranças indevidas lideram o ranking das reclamações que chegam ao Procon Assembleia. O consumidor ainda não consegue perceber e exigir os seus direitos?

Sim, cobranças indevidas em contas de telefone e cartão de crédito, principalmente, são muito comuns e lideram as consultas em todos os Procons do país. O consumidor está mais consciente dos seus direitos? Sim. Sabe que tem direito a um produto de qualidade? Sim.

Mas estou mais preocupado com o fato de que ele tem que exercer o direito. Mas o consumidor brasileiro hoje só olha duas coisas na conta: que dia vence e o valor. Não olha as ligações que fez, a franquia de internet, os serviços lançados, não gasta tempo com isso. Esse é um caminho para a lesão. Se percebe que pagou R$ 2 indevidos, geralmente acha que é pouco e deixa pra lá. De R$ 2 em R$2 se quita a folha de pagamento de uma empresa. Hoje temos que nos preocupar com a educação do consumidor.

Ele precisa perceber a lesão, ler seus contratos, questionar a cobrança indevida. No entanto, enquanto não houver decisão mais firme de multar e suspender a comercialização de um produto, nada muda. Procons têm esse poder, de suspender um produto, mas a empresa recorre à Justiça e aí entramos num ciclo. Se o Judiciário não mantém essa decisão, ou se demora, a ação do Procon não teve efeito prático.


 

Já houve suspensão de algum produto?

Com 16 anos à frente do Procon, vi uma única vez a suspensão da comercialização de um produto. Foi em Porto Alegre (RS), no caso de uma operadora de telefonia lesando os clientes com propaganda enganosa. A Anatel suspendeu a venda do serviço, mas faltando uma semana para o Dia dos Pais, por pressão da empresa, foi liberado. Foram três meses suspenso. O poder econômico ainda é muito forte neste país.

As mudanças no Código, que tramitam no Congresso, vão torná-lo mais eficaz em que aspectos?

O código é maravilhoso, mas o empresário não o respeita; não vê que ganharia ao respeitá-lo. Empresário tem que colaborar com o país. As mudanças vão cuidar da regulação do comércio eletrônico, corresponsabilidade dos bancos no caso de superenvididamento do cidadão e mudança processual das ações coletivas. Serão os artigos 281, 282 e 2 83, de 2012.

Segundo o Banco Central, 54% das famílias brasileiras estão endividadas. Esse é um fator com reflexo nas reclamações que chegam ao Procon?

O superendividamento é uma praga pior que a dengue, a zika e o chinkungunya. Está matando. São mais de 100 milhões de pessoas nessa situação. De cada dez pessoas que vêm aqui hoje, seis querem discutir alguma dívida: de cartão de crédito, de compra de carro e casa própria e, neste ano, até de água e luz.

O problema chegou nas tarifas públicas. Não estão conseguindo pagar água e luz, e com um agravante: se não pagar, desliga! Ficam sem o fornecimento de produtos essenciais. É gravíssimo! A marolinha do Lula chegou. Tenho dito que o endividamento faz mal à saúde. Em casos extremos de endividamento, a pessoa comete suicídio.

Então o problema não é só o desrespeito das empresas, mas temos um consumidor que procura o Procon porque não consegue pagar suas contas?

A gente se vê numa ciranda muito difícil: a indústria baixou a produção, veio o desemprego e, para se movimentar isso, você tem que incentivar consumo, concedendo crédito. A maioria não sabe planejar e fica endividada. Crédito e consumo excessivo é uma cilada! Temos consórcios de veículos, de 60 parcelas, em que o cara na terceira ou quarta está desistindo. É falta de planejamento.

Coloca nessa Classe C emergente uma oferta desenfreada. Que bom que o cara tem na casa dele TV LED, micro-ondas etc, mas cada um com um carnê! Tem juros de cartão de crédito chegando a 600% ao ano.

Qual o ânimo das pessoas que chegam no Procon?

Antigamente, o consumidor entrava aqui para resolver coisas pontuais. Era o problema do celular, do eletrodoméstico que não foi entregue. Hoje, o menor problema que esse consumidor está nos trazendo é o de consumo. Ele traz a crise econômica, o desemprego, a separação, a filha grávida, o filho drogado.

Todos os problemas sociais e econômicos são trazidos para dentro do Procon. E, por chegarem exaltados, acabam nos agredindo verbalmente e até fisicamente, com empurrões, dedo em riste. Temos casos de racismo e recaem sobre nossos estagiários.

 


O advogado Marcelo Barbosa nunca presenciou tantas agressões contra funcionários públicos

O senhor já se sentiu ameaçado?

Por questões técnicas, o Procon não discute juros abusivos. O fórum para isso é o Judiciário. Quando falo isso para um cidadão, preciso usar um escudo. Ele quer me agredir, dizendo que eu não quero resolver o problema dele. O que está acontecendo é que estão descontando em nós problemas outros. Tivemos que colocar polícia legislativa há dois anos, para nos proteger. Temos 60 estagiários e não estão preparados para esse tipo de problema.

Todos os Procons estão vivendo isso. Mantemos um aviso de que desacatar funcionário público é crime, e nós também temos que tratar o cidadão com respeito. Trabalho com 22 funcionários e 60 estagiários nas duas unidades. São estudantes de Direito, jovens com pouca experiência de vida ainda, não participaram de conflitos ainda. O primeiro é com esse cidadão endividado que chega aqui.

Teme coisa pior?

Neste ano estou com medo de entrar alguém e sair dando tiro. Vimos em Governador Valadares uma discussão e um militar, em tese preparado, dar tiros no vizinho. Entrou um cidadão no edifício Tiradentes e o deputado não estava lá para atender, saiu quebrando tudo.

Só 134 municípios mineiros têm Procons. Um número bastante tímido, não é?

Estamos vendo o caso de Betim, o primeiro a decretar estado de calamidade financeira. Se o município não tem dinheiro para pagar salários e arcar com o custeio de saúde e educação, como vamos exigir que crie um Procon?As causas coletivas ficam com o Procon Estadual e as individuais de âmbito estadual com o Procon Assembleia.

Pelo levantamento de 2015, cobrança indevida é o principal problema detectado.

Sim, principalmente ligado ao setor de telecomunicações: telefonia fixa, móvel, TV a cabo e internet. O Brasil tem 280 milhões de contratos só de telefonia. É comum a todas as operadoras a cobrança indevida. Ela lança um item e se você não percebe na conta, ela continua lançando.

Se acontece com 10%, com 28 milhões de contas, terem o lançamento de R$ 1,00 indevido, são R$ 28 milhões por mês. Essa praga da cobrança indevida tem que ser extirpada! Fiz um artigo para a OAB chamado “Pequenas lesões, grandes negócios”.

Não existe saída para isso?

Enquanto não tivermos uma atitude drástica, pesando no bolso do empresário, tipo a cada lançamento indevido terá que pagar R$ 50 mil, não tem solução. O cidadão tem que conferir suas contas. Até conta de restaurante eu confiro.

Já detectei uma cobrança errada na minha conta de telefone fixo, por um serviço SOS que eu não havia contratado. Se há cem cobranças indevidas, 50 são percebidas pelo consumidor; cinco deles vêm aqui, consigo resolver o problema de dois, enquanto três têm que ir à Justiça. Destes, um só vai, e perde. Veja quantas pessoas lesadas ficaram para trás.

Característica do consumidor brasileiro é não se preocupar com a coletividade, certo?

Se o brasileiro for lesado, e se estiver a fim, acreditar nas instituições, ele reclama e tem o problema resolvido. Mas ele não tem a percepção da lesão coletiva. Se compra um produto e vê divergência entre o valor da gôndola e o cobrado no caixa, reclama, resolve seu problema e vai embora.

Na Alemanha, na Bélgica, nos Estados Unidos, o cidadão considera que você está lesando o país dele e não só a ele, porque tem a sensação de nação – que nós não temos.

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