Chico Buarque e suas 'Caravanas' vão passar

Thiago Pereira
talberto@hojeemdia.com.br
22/08/2017 às 19:07.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:12
 (Leo Aversa/Divulgação)

(Leo Aversa/Divulgação)

Vão passar, a partir desta sexta-feira, nas avenidas e redes sociais, uns sambas, boleros e blues que, em tempos de Pablos e Anittas, Maiaras e Maraísas, talvez não sejam mais tão populares assim. Os paralelepípedos das novas cidades parecem não se arrepiar com a presença da nova obra de Chico Buarque, “Caravanas”, a que o Hoje Em Dia teve acesso ontem.

Se bem que a julgar pelas problematizações recentes em torno do primeiro single “Tua Cantiga” (um momento menor do disco, diga-se), as cidades estão atentas sim: o poeta maior de nossa música virou reles réu machista no tribunal do “Feicibuque” por conta dos versos “Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir”.

Muito além de “passar o pano” para um eu-lírico (!), será que esquecemos que por esta pena passaram sambas de combate imortais? Que este Chico deu voz àqueles que sangraram pelos nossos pés? Ou agora o Francisco que cantou (e canta) lindamente tantas Marias está destinado ao escaninho dos nossos ancestrais? O que fazer então quando ele mesmo (será intencional?) coloca como segunda música do disco o bom “Blues Pra Bia”, canção de onde versos como “No coração de Bia, meninos não tem lugar” podem jogar mais lenha na fogueira de verdades (mas também de vaidades)?
Talvez seja um luxo imperdoável, especialmente num tempo que é página infeliz de nossa história, deixar passar um disco do Chico, ou reduzi-l0ao discurso “social”, sem pensar em seu ethos artístico. Especialmente este “Caravanas” que reúne um repertório inspiradíssimo: prova inconteste que Chico é mais que uma passagem desbotada da memória das novas gerações.

Nova geração que brilha intensamente no disco, aliás. A neta Clara, de 18 anos, faz o avô sorrir faceiro ao concatenar Twitter e Instagram aos mapas, signos e tratados que orientam a busca pela paz no amor, na regravação de “Dueto”, para futuros e eternos amantes. Já o neto Chico Brown, 21, diz presente na melodia da magnífica valsa “Massarandupió”, praia baiana que batiza uma canção que trata da passagem do tempo.

Por falar nele, “Caravanas” nos lembra que nosso tempo pode e deve ser partilhado com Chico (e com Ney, Caetano, etc). Se buscamos urgentes desconstruções, às vezes podemos errar, cegos pelo continente, neste percurso, ainda levando pedras para Genis. Feito penitentes, erguemos estranhas, estranhíssimas catedrais. Esquecemos que urge também o espaço para líricas oníricas, como no resgate de “A Moça dos Sonhos”; e que temos, um dia afinal, direito a uma alegria fugaz, seja com carnaval, seja com futebol – que ele homenageia na incrível “Jogo de Bola”. 

Tudo isso significa que Chico não dormiu sem perceber que estamos sendo subtraídos em tenebrosas e temerosas transações. Pelo contrário: a obra-prima do disco, a faixa-título, convoca Camus para falar de “estrangeiros”– negros, suburbanos-muçulmanos com “picas enormes e sacos tipo granadas” e de um sol odioso que faz matar. E assim, Chico se apresenta como mais um farol necessário para este momento que, sim, vai passar. Passemos juntos? 

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