Entrevista: Joanna Maranhão aponta 'ditadura' na CBDA e mau uso de verbas na Rio-2016

Cristiano Martins
csmartins@hojeemdia.com.br
07/04/2017 às 22:16.
Atualizado em 15/11/2021 às 14:03

A quinta colocação de Joanna Maranhão nos 400m medley, em Atenas (2004), é a mais alta posição já alcançada por uma brasileira nas piscinas em toda a história das Olimpíadas. Na Rio-2016, ela tornou-se ainda a primeira e única nadadora do país a disputar quatro edições dos Jogos. E, também no ano passado, “monopolizou” os recordes sul-americanos das três provas mistas do esporte (100, 200 e 400m).

Não foi apenas pelos resultados, porém, que a maior nadadora do Brasil se destacou como uma das atletas mais relevantes de sua geração. Vítima de abuso sexual na infância, a pernambucana de 29 anos levantou a bandeira contra a pedofilia e motivou a criação da “Lei Joanna Maranhão” (2012), que estendeu o prazo de prescrição para crimes de estupro e atentado violento ao pudor contra crianças e adolescentes.

Engajada em questões políticas e sociais, a esportista se notabilizou também como a principal voz crítica à gestão da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), cujo presidente afastado Coaracy Nunes foi preso na última quinta-feira (6), por suspeita de desvios de R$ 40 milhões em recursos públicos.

Cinco anos depois de uma passagem conturbada pelo Minas Tênis Clube, Joanna voltou a morar em Belo Horizonte no fim de 2016, após o casamento com o judoca Luciano Corrêa, em outubro. E, neste ano, adotou como nova “casa” o Centro de Treinamento Esportivo da UFMG, onde recebeu a reportagem do Hoje em Dia para esta entrevista, na véspera da operação deflagrada pela Polícia Federal na CBDA.

O fato de você manifestar publicamente tantas críticas à CBDA afetou de que forma a sua carreira?

Na verdade, acho que me manifesto até pouco. Às vezes, tenho vontade de fazer um canal no Youtube só para falar sobre todos os problemas. É muita coisa, as pessoas não fazem ideia. É caso de polícia mesmo. Eu acredito que só não sou uma atleta com resultados melhores porque realmente não consigo separar uma coisa da outra. O meu maior desafio é me sentir à vontade na seleção brasileira, porque tudo me incomoda muito. A pessoa que está ao meu lado recebe um salário, sabe que eu não estou recebendo, mas não está nem aí para mim. E os técnicos também fecham os olhos. É uma ditadura, realmente.

Você não recebeu nenhum pagamento durante a preparação para os Jogos do Rio?

Eu ralei muito para voltar ao ranking mundial, ficar entre as 20 melhores. E cheguei em 2016 na 17ª posição, o que me dava direito ao Bolsa Pódio. Mas a CBDA cortou. Procurei o Ministério do Esporte, e eles comprovaram que eu preenchia todos os requisitos, só que eu tinha sido ‘esquecida’. Havia uma cláusula lá dizendo que eu precisaria ser indicada pela confederação, e ela me 'esqueceu'. De salários da seleção, recebi dois meses durante toda a preparação olímpica. E esse dinheiro foi o que usei para comprar o traje com o qual competi nos Jogos.Satiro Sodré/SSPress

Nadadora de 29 anos tem recorde de participações e melhor resultado entre as brasileiras em Olimpíadas

A CBDA projetava até cinco medalhas, mas o Brasil não foi a nenhum pódio nas piscinas. Como avalia esse desempenho?

O desempenho foi péssimo. Mas não foi péssimo por falta de dinheiro. O dinheiro estava lá e chegou para alguns atletas que a CBDA entendeu como potenciais medalhistas. Uma ou duas mulheres no máximo, sendo que eu não estava incluída, e alguns homens. Essas pessoas tiveram absolutamente tudo. Para você ter ideia, o salário de técnico chefe é de R$ 12 mil na seleção masculina e R$ 8 mil na feminina. O técnico da seleção feminina não me mandou sequer um e-mail durante todo o período. Nem para perguntar se eu estava bem. Ele não me acompanhou enquanto atleta da seleção olímpica, e sei que também não acompanhou outras meninas. Então, eu não questiono o valor dos salários, mas será que foi um trabalho compatível?

Por que outros atletas não assumiram uma postura mais crítica?

O sistema no esporte é uma ditadura, do comitê olímpico, das confederações, das federações, e assim por diante. O atleta é doutrinado para ser uma máquina de fazer resultados. Em um momento, eu comecei a me questionar o por quê disso. As pessoas se perpetuam no poder, e o atleta não tem voto democrático, mas está lá fazendo resultados e prestando continência para a bandeira. Acho que a natação, de forma geral, se identifica mais com uma visão de direita, pois é um esporte branco, elitizado.

Cheguei em 17º no ranking mundial, o que me dava direito ao Bolsa Pódio. Mas a CBDA cortou. Procurei o Ministério do Esporte, e ele comprovou que eu preenchia os requisitos, só que tinha sido ‘esquecida’. Havia uma cláusula lá dizendo que eu precisaria ser indicada pela confederação. De salário, recebi dois meses durante toda a preparação olímpica”

Você foi criticada por ter uma posição de esquerda?

No ano passado, por exemplo, quando houve aquela condução coercitiva do ex-presidente Lula, eles (dirigentes) falaram para os atletas fazerem um 'aplaudaço' no Grand Prix de Orlando. Aí eu questionei, porque quando esse mesmo Ministério Público acionou a CBDA, nenhum deles fez absolutamente nada. A nossa corrupção, essa que vai mexer com a estrutura da confederação e nos nossos bolsos, essa é silenciada. E aí, é lógico que fui atacada pelo meu técnico e por todos os outros.

Você também foi atacada nas redes sociais durante a Olimpíada, processou os agressores e disse que reverteria os eventuais ganhos para sua ONG (Infância livre, de combate à pedofilia). Como andam essas ações?

Os agressores foram identificados e já virou processo. Mas passei uma procuração para um advogado, porque mexer com isso significa que de tanto em tanto tempo eu vou ter que ler de novo um cara falando 'não te estupro porque você não merece' ou 'seu abusador devia ter te matado quando você tinha 9 anos'. Isso não vai me fazer nenhum bem. Desde o início, deixei claro que eu não tinha interesse em qualquer retorno monetário. Só queria que as pessoas entendessem de uma vez que isso é errado, que não é porque você está atrás de um computador que tem o direito de atacar qualquer pessoa.

Você se filiou recentemente ao PSOL. Cogita concorrer a um cargo público no futuro?

Sinceramente, não tenho a menor intenção. Quando você olha a Erundina (Luiza, deputada federal pelo PSOL-SP), aquela mulher é uma rocha, é uma vida inteira ofertada à vida pública, tomando porrada de tudo que é lado. Não sei se eu conseguiria. Para ser representante de uma pauta de esquerda, você precisa ser mais do que apenas forte. A minha filiação teve mais a ver com crescimento pessoal, para me trazer aprendizado, um outro olhar da sociedade, um olhar que eu nunca tive enquanto pessoa branca, heterossexual, de classe média. Eu preciso disso para evoluir como ser humano.EEFFTO/UFMG

Desde janeiro deste ano, nadadora da equipe Unisanta treina no Centro Esportivo da UFMG

Como se sentiu nesta volta a Belo Horizonte após os problemas na primeira passagem (2009/11)? Qual é a sua relação afetiva com a cidade?

Eu já tive uma relação de amor e ódio com Belo Horizonte. Quando vim morar aqui, me apaixonei, tanto que comprei um apartamento e disse que nunca mais iria embora. Mas aí tive esse problema com o Minas. Acho que conheci o pior do classismo mineiro, pessoas que têm poder na mão e não admitem que também erram. Acabei transferindo esse sentimento para a cidade inteira. E tem outro detalhe: quando você é atleta do Minas, fica muito fechado ali, só anda com as pessoas do clube. Mas a cidade é muito, muito mais do que isso. Hoje, eu enxergo essas coisas e sei que estou no lugar certo.

Qual foi o principal problema na época?

Eu era atleta do Minas e renovei o contrato por dois anos, mas na metade do primeiro ano eles mandaram o técnico embora, do nada, sem nenhuma justificativa plausível. Queriam um estrangeiro, e acabaram contratando um australiano (Scott Volkers) que lá na Austrália não pode nem ir para a borda da piscina, porque é acusado de pedofilia. Isso, entre outras injustiças que eu via. Ali eu percebi que, se você questiona, é retaliado. Mais uma vez, gritei em nome de todos e fui boicotada.

Nunca tive uma estrutura tão boa à minha disposição como tenho aqui (no CTE-UFMG). Na verdade, acho que ninguém no Brasil tem. Sair dessa piscina, descer uma escada e ter uma sala de musculação como aquela, para um atleta, é algo que não existe. Isso aqui é uma mina de ouro”

Como aconteceu essa reviravolta na renovação com o Pinheiros, em dezembro, e sua a vinda para o CTE neste ano?

Comecei a fazer alguns treinos aqui no ano passado, quando vinha visitar o Lu. Antes de casar, já tinha conversado com o Pinheiros sobre a mudança para Belo Horizonte e avisado que o CTE estava à disposição. Isso já estava previsto, e o Pinheiros tinha falado ‘ok’. Me mudei para a cidade no começo de dezembro, e no dia 15 eles me chamaram para uma reunião lá em São Paulo, que aparentemente seria para a renovação. Mas, em cinco minutos de conversa, os caras falaram ‘você está fora’. Foi mais uma porrada que eu tomei do sistema da natação.

O motivo alegado pelo Pinheiros na sua dispensa foi que você não chegaria à Olimpíada de 2020. Esta é uma meta?

Eu nunca trabalhei de quatro em quatro anos, mas um dia de cada vez. Tenho, sim, planos bem definidos a cada temporada, mas você nunca vai me ver revelando os tempos que eu pretendo fazer, a não ser com meu técnico e minha psicóloga. Não quero ter que superar as minhas expectativas e mais as dos outros. Mas posso garantir que, qualquer que seja a minha decisão, vou me empenhar 200%, como faço todos os dias. Se um dia eu sentir que estou empurrando, fazendo isso ‘nas coxas’, simplesmente não vai mais valer a pena.

Você assinou com a equipe da Unisanta, mas trabalha três semanas por mês aqui e só uma lá em Santos (SP). Como tem avaliado esse modelo de treinamento?

Meio sem querer, montamos um modelo excelente. Eles mandam o treino, e eu faço aqui com o Gabriel Quinan (preparador físico) e o pessoal do CTE. Nunca tive uma estrutura tão boa à disposição como tenho aqui. Na verdade, acho que ninguém no Brasil tem. Sair dessa piscina, descer uma escada e ter uma sala de musculação como aquela, para um atleta, é algo que simplesmente não existe. Ninguém precisa mais sair do Brasil para encontrar um grande Centro de Treinamento. Isso aqui é uma mina de ouro.

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