Milho, cartazes, brigas e homofobia: o duelo entre Atlético e Cruzeiro fora das quatro linhas

Henrique André
hcarmo@hojeemdia.com.br
03/07/2017 às 20:15.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:22
 (Marcelo Prates; Flávio Tavares/Hoje em Dia)

(Marcelo Prates; Flávio Tavares/Hoje em Dia)

Flávio Tavares

Arremessar rádios de pilha no gramado, disparar palavras racistas contra jogadores do time adversário e várias outras atitudes, antes consideradas comuns no mundo do futebol, ficaram para trás junto com as arquibancadas de cimento, os velhos estádios e toda uma geração de torcedores. A violência, principalmente em dias de clássico, e os insultos de caráter homofóbico e misóginos, porém, seguem banalizados e longe do fim.

Para muitos, inclusive, os gritos de “bicha”, que se tornaram comuns quando o goleiro adversário corre para bater o tiro de meta, e os termos “Maria” e “Franga”, utilizados por atleticanos e cruzeirenses para se referir ao rival, fazem parte da cultura da bola.

Certos disso, muitos torcedores de Galo e Raposa batem no peito, principalmente nas redes sociais, e classificam como “mimimi” as ações para extinguir tais atitude, condenáveis e sem espaço numa sociedade que cada vez mais se abre para as diferenças.

Além disso, não se pode esquecer os confrontos entres os rivais antes de a bola rolar nos clássicos. Apesar de serem controlados pela Polícia Militar (PM) no entorno de Mineirão e Independência, em vários pontos da cidade a selvageria tem como resultado feridos, mortos e patrimônio público e privado destruídos.

No jogo do último domingo (2), válido pela 12ª rodada do Brasileirão, o que se viu foi o mesmo de sempre, desde cedo. Em bairros afastados do Horto, houve brigas entre organizadas e registros de vandalismo. Na rua Alexandre Tourinho, utilizada para a entrada dos torcedores do Cruzeiro (visitantes), faixas e cartazes de caráter homofóbico, confeccionadas por atleticanos, foram colocadas para ao longo da via para recepcionar “as Marias”.

É uma pena que os nossos dirigentes não reconheçam a responsabilidade da instituição. Na Europa, há uma preocupação de que a cultura futebolística seja também um espaço de educação e cidadania, então nenhum clube está isento de punição"Heloísa Reis,Pós-doutora em Direito Esportivo e Sociologia do Esporte pela Universidad de Murcia (Espanha)

Mimimi ou desrespeito?

De acordo com Silvio Ricardo, coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (Gefut) da UFMG, a questão dos embates entre os torcedores, principalmente quando Galo e Raposa se enfrentam, está enraizada em questões sociais.

“Este comportamento agressivo, caracterizado pelo termo rivalidade, não é nada mais do que reflexo do momento vivido em nossa sociedade. Poderia ser manifestado de outras formas, caso não aparecessem no futebol”, diz Silvio.

Em relação aos termos “Maria” e “Franga”, utilizados por atleticanos e cruzeirenses, respectivamente, para ofender o rival, o coordenador do Gefut também classifica como agressão.

“Noutros tempos, era aceito chamar o jogador do outro time de macaco e arremessar rádio de pilha no gramado. Tudo isso ficou para trás. A sociedade mudou e muita gente ainda não enxergou”, analisa o coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcida.

Ainda de acordo com Silvio Ricardo, as ofensas homofóbicas inibem e afastam dos estádios um grupo de pessoas que se sente acuado pelo comportamento dos torcedores do, muitas das vezes, próprio clube de coração.

Exemplo vivo

Corroborando com a fala do coordenador, o servidor público Daniel Freitas, de 32 anos, é exemplo do homossexual que deixou de ir aos estádios, considerado ambiente hostil.

“Todo torcedor que vai ao campo já corre risco de agressão. Eu, como parte dos LGBTI, (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais), assim como todos os torcedores desta bandeira, sofremos um risco maior. Quando pondero isso, prefiro não ir”, conta Freitas. “Somado a isso, não me sinto representado pela minha própria torcida quando ela se dirige à adversária com gritos homofóbicos”, acrescenta.

Nem as faixas para recepcionar “Marias”, nem o milho espalhado para provocar “Frangas” são atitudes homofóbicas de atleticanos e cruzeirenses, na opinião de um número considerável de internautas.

Para muitos torcedores de Galo e Raposa, que se manifestam principalmente nas redes sociais (veja abaixo), tentar acabar com este tipo de provocação, para eles sadia e longe de ser relacionada a atos de violência, é "tirar a graça" do futebol e da longa rivalidade entre alvinegros e celestes.

“Está ficando chato. Vou ao campo, detesto brigas entre torcidas, mas essas brincadeiras é que fazem o futebol respirar”, se manifestou um torcedor por meio do Twitter.

De acordo com o coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (Gefut) da UFMG, Silvio Ricardo, a união entre clubes e federações para conscientizar os torcedores pode ajudar, e muito, a melhorar este cenário.

Vandalismo e selvageria

Em relação aos confrontos entre torcedores, porém, o coro é totalmente ao contrário nas ruas e redes sociais. Em contato com atleticanos e cruzeirenses, o que se percebe é que todos anseiam pelo fim dos embates, protagonizados principalmente pelas organizadas dos dois lados.

“Estas pessoas precisam se conscientizar. O processo é educacional. Estamos fazendo nossa parte nas ruas”, comenta o Tenente-Coronel Welerson Conceição.

“No último domingo, tivemos êxito pelas ações antecipatórias. Não tivemos ocorrências no entorno do Independência. Pela cidade, fizemos rondas preventivas”, finaliza o Comandante do 16º Batalhão da Polícia Militar.

Mini-entrevista com Heloísa Reis, professora titular do Departamento de Ciências do Esporte e coordenadora do Grupo de Estudos do Futebol da Unicamp, pós-doutora em Direito Esportivo e Sociologia do Esporte pela Universidad de Murcia (Espanha).

Você já participou de intercâmbios como pesquisadora na Espanha, na Inglaterra e, agora, está na Alemanha. Essa realidade é diferente na Europa?

Na Europa, em geral, existe esse tipo de insulto também. Mas tem diminuído consideravelmente, porque a Fifa e a Uefa realmente não admitem atos desta natureza. É uma pena que os nossos dirigentes no Brasil não reconheçam a responsabilidade da instituição clube e da instituição federação, diferentemente do que ocorre nos países onde o futebol é mais desenvolvido. Aqui (na Alemanha), é muito claro o papel do dirigente, fica óbvio que o clube deve se manifestar, nem que seja com uma nota oficial repudiando qualquer discriminação de gênero ou racial. Isso é muito interessante, pois há a preocupação de que a cultura futebolística seja também um espaço de educação e construção de cidadania, então nenhum clube está isento de punição por qualquer ação de seus torcedores. Por isso, os próprios clubes têm departamentos bem desenvolvidos para trabalhar essas questões.

No último dia 28 (Dia do Orgulho LGBT), o Mineirão e alguns clubes da Série A se manifestaram em apoio à data. Como avalia essas ações?

Acredito que parte da sociedade brasileira dá sinais de que começou a enxergar esses insultos e músicas nos estádios como uma violência simbólica. A partir daí, é possível termos campanhas educativas e até represálias do ponto de vista administrativo e penal, porque a discriminação de gênero é algo intolerável em uma sociedade desenvolvida.

Você defende que os clubes sejam punidos?

A intolerância racial ou de gênero é passível de punição, sim, existe respaldo legal para isso. Quem organiza o campeonato deveria punir, ou está sendo conivente. Este é um tema importante para que nós avancemos no nosso processo civilizatório. Se, ao mesmo tempo, existem manifestações contra estes atos, é porque a sociedade está mais consciente. Para aquele indivíduo machista e homofóbico, esta é uma tremenda ameaça, pois ele se sente tolhido no ambiente do futebol, onde ele se sentia seguro para reproduzir seus valores. Quando as instituições não se manifestam, fica claro que compartilham desses valores.

As pessoas manifestam mais os preconceitos nos estádios?

A cultura torcedora do futebol é predominantemente masculina e machista. Os torcedores veem como naturais os cantos e os insultos. Tratam como uma brincadeira, com naturalidade, a ofensa a um outro gênero. E não estamos falando só de torcidas organizadas, mas da maioria do público do futebol. A maioria dessas pessoas também manifesta a homofobia e o machismo em outros ambientes. A questão é que a arquibancada possibilita o anonimato. E, nela, esse torcedor vai encontrar mais homens machistas e pouquíssimas mulheres. Os estudos apontam que, normalmente, as pessoas preconceituosas manifestam seu preconceito em qualquer ambiente. Mas, sem dúvida, o estádio facilita, pelo anonimato e pelo companheirismo dos colegas que têm os mesmos valores.

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