'Algumas posições beiram a insanidade', diz juiz da Vara da Infância de BH

Estadão Conteúdo
15/10/2017 às 10:01.
Atualizado em 02/11/2021 às 23:13
 (Carlos Rhienck)

(Carlos Rhienck)

O juiz da Vara da Infância e da Juventude de Belo Horizonte, Marcos Flávio Lucas Padula, afirma que há uma campanha de "calúnia e difamação" contra a instância que comanda. Em face da comoção que foi criada, diz, ele mesmo decidiu suspender em agosto a Portaria n.º 3. "Entendi que era o caso de rever a redação", diz. Para o magistrado, está havendo "uma demonização do Judiciário e uma vitimização dos pais".

Está havendo um encaminhamento excessivo de bebês para o acolhimento compulsório em Belo Horizonte?

Está havendo uma campanha de calúnia e difamação contra a Vara de Infância feita por pessoas de posição política radical sobre a questão, com uma série de ofensas e agressões que não têm nada de real. Estou muito aborrecido, muito chateado, afinal, são 22 anos como juiz da Infância.

Mas está havendo esse acolhimento compulsório?

O acolhimento é sempre compulsório, só pode existir por ordem judicial. Trata-se de uma medida de proteção, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Não fui eu que inventei. Estão falando como se fosse uma medida autoritária ou discricionária, e não é. O fato de a criança ir para o acolhimento não quer dizer que automaticamente será adotada.

As denúncias dão conta de que as mães não estão sendo ouvidas e que não há direito de defesa.

Não é verdade. Colocamos até carro para que os pais venham e os encaminhamos para a Defensoria Pública. Mais direito de defesa do que esse não há.

Movimentos sociais acusam a Vara da Infância de agir de forma discriminatória. O que o senhor tem a dizer?

Falam como se fosse uma questão socioeconômica, como se estivéssemos visando às minorias. Nossa preocupação é proteger a criança em um momento de grande vulnerabilidade. Muitos bebês nascem com sequelas graves por causa do crack. Estão falando como se os pais fossem sempre vítimas, como se não pudessem ser responsabilizados. Não quero ser alarmista mas, se for assim, caminhamos para um genocídio de crianças.

Por que o senhor suspendeu a Portaria n.º 3?

Porque estavam nos acusando de fazer pressão psicológica sobre os profissionais de saúde (dos hospitais, que devem acionar a Justiça). A Portaria apenas regulamentava uma praxe que já existia há mais de 20 anos, muito antes de eu chegar a Belo Horizonte. Em face dessa comoção, entendi que era o caso de suspender e rever a redação do texto.

Outro problema apontado na Portaria é o fato de citar especificamente pessoas que vivem na rua e dependentes químicos.

Algumas posições beiram a insanidade. A quantidade de crianças que vemos nascer com sequelas graves, com pais incapacitados de dar assistência imediata... Mas somos chamados de fascistas, nazistas, começa uma demonização do Poder Judiciário e uma vitimização das mães e dos pais. Para pacificar a questão, estamos repensando a redação da Portaria para termos algo no meio termo, que fale em vulnerabilidades, mas não especificamente em população de rua ou dependência química. Mas temos que ter cuidado para não cairmos num posicionamento que coloque as crianças em risco.

Diante de tantas denúncias, que providências o senhor tomou?

Pedi a uma colega que revisasse os processos dessas mães que estão sendo citadas. Foi tudo revisto, inclusive o caso da Aline. Não há irregularidade. Tem muitas mulheres que são ótimas mães hoje, mas ficaram sete anos presas, por exemplo. A criança não podia ficar sete anos na prisão. Se não tem ninguém da família para ficar, entregamos para uma família substituta. E aquele momento não tem volta.

Estratégia de encaminhamento compulsório de bebês divide especialistas

O encaminhamento compulsório de bebês da maternidade para abrigos em Belo Horizonte divide especialistas ouvidos pela reportagem. Alguns entendem que a proteção à criança deve ser a prioridade. Outros veem suposto abuso de poder e discriminação nas atitudes do juiz Marcos Flávio Lucas Padula, da Vara da Infância e da Juventude da capital mineira.

A advogada Silvana do Monte Moreira, especializada em casos de adoção, considera legítimo o acolhimento compulsório das crianças em situação de vulnerabilidade. Segundo ela, o acolhimento deve durar enquanto são realizados os estudos necessários para determinar se a mãe é usuária contumaz de droga, se tem uma rede de apoio. "É preciso lembrar que muitas mulheres têm as crianças e fogem do hospital, deixam nome e endereço falsos pela necessidade imediata de usar a droga", afirma a advogada. "Muitas crianças nascem com síndrome de abstinência e precisam ser medicadas com drogas pesadas."

Opinião oposta tem a defensora pública Eufrásia Maria Souza das Virgens, da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro. Segundo ela, o afastamento de bebês de mães em situação de rua e usuárias de droga é recorrente e nacional - não estando restrito apenas a Belo Horizonte. "Nosso temor é de que, sob o argumento de proteção, a criança acabe sendo afastada da família nos primeiros meses de vida e encaminhada para um abrigo onde pode passar a vida inteira. Tem sido nossa preocupação garantir o direito da criança à convivência familiar."

"A questão central nessa história toda é que essa medida vem sendo adotada como se fosse uma solução", destaca Paulo Silveira, do Movimento Respeito é Bom e Eu Gosto, que atende população de rua, usuários de drogas e pessoas com distúrbios mentais. "É o Estado que não cumpre o seu papel de recolher essa menina, essa mulher, que pode ter sido estuprada em casa e pode ter ido para a cracolândia para se proteger do agente violador e acaba virando usuária de drogas. O Estado não permite que ela diga não à gravidez, mas também não permite que diga sim à maternidade."

Já o desembargador Siro Darlan, que já esteve à frente da Vara de Infância e Juventude do Rio de Janeiro, prefere o caminho do meio. "O princípio que deve reger todas as ações em relação à criança é o interesse superior da criança. Com quem essa criança vai ficar melhor? Essa é uma tarefa muito difícil. É mais fácil julgar o julgador."

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
http://www.estadao.com.br

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