Orla da lagoa da Pampulha tem pelo menos 40 sem-teto

Raul Mariano
rmariano@hojeemdia.com.br
21/07/2018 às 13:37.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:32
 (Flávio Tavares )

(Flávio Tavares )

O belo-horizontino Sérgio Araújo, de 54 anos, nem se lembra há quanto tempo vive na rua, mas garante que, só na calçada em frente ao zoológico de BH, na Pampulha, já são 18 meses de moradia improvisada. Perto dali, na orla da lagoa, que faz parte do conjunto moderno tombado como patrimônio da humanidade, há exatos dois anos, pelo menos 40 sem-teto foram identificados, conforme abordagens feitas pela Secretaria Municipal de Política Urbana.

“Nós tiramos, mas eles voltam”, afirma Maria Caldas, responsável pela pasta. Na semana passada, medidas foram anunciadas para enfrentar o problema. Uma delas será a desobstrução de vias públicas transformadas em lar. O desafio, no entanto, não se restringe à Pampulha. Em praticamente toda a cidade, a população em situação de rua não para de crescer. Hoje, segundo a Secretaria Municipal de Assistência Social, seriam 4.553 pessoas.

Pampulha

Na região que tem a chancela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Sérgio reside com mais três sem-teto em condições precárias. O contraste entre a “casa” deles e as mansões do entorno chama a atenção.

Se nos imóveis luxuosos o cuidado com a arquitetura e o paisagismo são destaque, na calçada o que se vê é um amontoado de cobertores, colchões encardidos, lixo e cinzas de fogueiras, usadas para combater o frio nas madrugadas.

Enquanto cozinha feijão em um fogão de tijolos, o homem reforça a informação da PBH: as tentativas de retirada já aconteceram várias vezes. “Mas não adianta. A gente sempre volta. O problema é muito maior do que limpar a rua”, critica.

No mesmo local, o alagoano Cícero Santos explica que tem recorrido à fé para se proteger das intempéries e dos riscos que, segundo ele, “só conhece quem vive na rua”. 

Aos 44 anos, o devoto de Nossa Senhora Aparecida afirma que perdeu o contato com os familiares do Nordeste desde que se tornou alcoólatra. “O importante é a gente acreditar que tudo vai melhorar”.Flávio Tavares / N/AFÉ E ESPERANÇA – Devoto de Nossa Senhora de Aparecida, o alagoano Cícero acredita que a situação vá melhorar

Extremos

Do outro lado de BH, no Barreiro, a Praça José Verano da Silva também se tornou residência de pelo menos dez desabrigados. Lá, barracas de lona, cobertores e objetos pessoais estão espalhados pelo chão. 

É nesse ambiente que vive Kele de Freitas, de 35 anos. Ex-detenta, ela fala sobre o distanciamento dos filhos e admite que superar o vício em álcool é, hoje, o maior desafio. “Já usei drogas piores e, por um vacilo, me envolvi com pessoas erradas. Fiquei cinco anos na cadeia. Minha filha, que tem 8 anos, nasceu enquanto eu cumpria pena”, relata.Maurício Vieira / N/A

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Os conflitos em casa, porém, ainda são o principal impedimento para que ela volte ao convívio com a família, que mora perto da praça. “Não dou certo com minha mãe. Se for para lá, as brigas começam”, conta.

Rotina

Em Venda Nova, na Praça Amynthas de Barros, a cena é idêntica. Mas, além dos objetos pessoais dos moradores, há também móveis destruídos e aparelhos eletrodomésticos descartados, tudo para ser vendido como sucata. 

“É fazendo isso que a gente consegue ganhar um trocado”, explica José Alves Ferreira, de 43 anos. Há quatro, o homem, natural de Padre Paraíso, no Jequitinhonha, não sabe o que é dormir sob um teto. 

Ex-profissional de acabamentos em gesso, ele mostra com orgulho, na tela do smartphone, a foto dos três filhos que vivem com a mãe. José afirma que todo dinheiro que consegue usa para comprar agrados para o trio. “Mas não é fácil. Hoje vendo o quilo de sucata por R$ 0,40. Tem que trabalhar muito para ver dinheiro”. Flávio Tavares / N/A

VINDO DO JEQUITINHONHA – Há quatro anos José não sabe o que é viver sob um teto

Resistência do público em ir para os abrigos municipais desafia as autoridades

Direcionar a população sem-teto para os abrigos disponibilizados pela prefeitura não é fácil. A maioria das pessoas ouvidas pela equipe do Hoje em Dia resiste em ir para esses locais sob o argumento de que esse acolhimento restringe a liberdade.

Leandro Oliveira da Silva, de 31 anos, garante que, nos quatro em que vive nas ruas de Venda Nova, nunca pisou em um abrigo. E diz que não pretende fazê-lo. “Aqui eu como, durmo e, quando dá, até tomo banho. Não preciso de abrigo”.

Hoje, o município mantém cerca de mil vagas em albergues, abrigos e repúblicas para que as pessoas possam se higienizar e utilizar banheiros, pernoitar, comer e, dependendo do caso, até morar.

Trabalho intensificado

Por nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social afirmou que o trabalho tem sido intensificado, sobretudo na orla da Lagoa da Pampulha, desde o último dia 10.

Segundo o órgão, dois profissionais, com formação superior, agem no perímetro orientando os sem-teto sobre as unidades de acolhimento disponíveis. Pessoas com sofrimento mental, que fazem uso de drogas ou gestantes são encaminhadas para centros de saúde. A atividade também abrange outras áreas da regional, como o perímetro do zoológico.

A pasta informou que 120 vagas foram abertas em um abrigo na avenida Paraná, no hipercentro. Doze arte-educadores foram contratados para facilitar a criação de vínculos. Outros oito profissionais, com trajetória de vida nas ruas, também trabalham nos serviços de abordagem.

A Pastoral de Rua foi procurada pela reportagem, mas não disponibilizou fonte para comentar o assunto.

Além disso

Conforme o Hoje em Dia mostrou na última sexta-feira, as abordagens aos moradores de rua serão feitas por nove equipes, formadas por psicólogos, assistentes sociais, Superintendência de Limpeza Urbana (SLU), Política Urbana e Guarda Municipal. Antes, apenas um grupo com esses profissionais atuava na cidade.

Eles ficarão responsáveis por impedir que os sem-teto montem barracas e coloquem móveis, colchões, varais e fogareiros nas vias públicas. Os objetos serão transferidos para um depósito da prefeitura ou até mesmo levados pelo próprio desabrigado, desde que não ultrapasse o volume de um carrinho de supermercado. O que ficar guardado – em local que não teve o endereço informado – poderá ser retirado posteriormente, desde que ele comprove um espaço para deixar o material.

Apesar de a PBH estimar 4.500 pessoas vivendo nas ruas da cidade, dados do Cadastro Único, do governo federal, publicados no portal do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), informam que a metrópole tem 7.332 desabrigados.

(Colaborou Malú Damázio)

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