Dois anos após refúgio em BH, jovens sírios mostram como anda a rotina

Malú Damázio
mdamazio@hojeemdia.com.br
16/10/2016 às 22:30.
Atualizado em 15/11/2021 às 21:15
 (FLÁVIO TAVARES)

(FLÁVIO TAVARES)

Sentado em um banco de concreto perto de casa, na Barragem Santa Lúcia, região Centro-Sul de BH, Nadim Daboul abre a carteira e estende as mãos para mostrar, com orgulho, o CPF e registro de permanência no Brasil. O documento de papel amarelo é plastificado e traz a inscrição, em português: residente. Nadim nasceu em Homs, cidade síria a mais de 10 mil quilômetros da capital mineira, onde mora desde abril de 2014.

“Queria continuar meus estudos e fazer mestrado, mas com a guerra não era possível. As aulas da faculdade mudavam de lugar todos os dias porque as ruas eram fechadas”, conta o rapaz de 28 anos, que é formado em engenharia de petróleo. Aqui, Nadim trabalha em uma franquia da lanchonete Vila Árabe.

Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) informou que Aleppo – cidade no Norte da Síria – vive a pior catástrofe humanitária da guerra iniciada em 2011. Com a calma e o receio de quem fala sobre um assunto que ainda é sensível, Nadim constata que não poderia seguir com os planos acadêmicos em um país que foi pego de surpresa por um violento conflito. A guerra por lá já vitimou mais de 300 mil pessoas nos últimos seis anos, de acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos. 

Como a maioria dos sírios residentes em Belo Horizonte, o engenheiro veio para o Brasil com a ajuda do conterrâneo George Rateb Massis, padre responsável pela paróquia Sagrado Coração de Jesus. A igreja auxilia na adaptação dos refugiados, com a busca por casa e emprego.

Autodidata

Padre George ajudou também na acolhida do turismólogo e administrador Bahiej Massouh, de 26 anos. Articulado e com ótima fluência em português, ele fala outros nove idiomas além do árabe: inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, russo, sueco, polonês e turco. O rapaz, que é autodidata e agora leva nas mãos um dicionário de holandês para onde vai a fim de continuar os estudos, também faz das línguas uma fonte de renda. Bahiej dá aulas de árabe e realiza atividades de tradução e interpretação.

“Os idiomas são muito legais, porque abrem portas e quebram qualquer barreira entre você e outro povo. E o Brasil não foi uma dificuldade para mim. Sei me comunicar, não tenho medo de pedir informação e o povo é muito acolhedor, o que faz com que eu não me sinta um estrangeiro”, diz. 

Além do idioma, a culinária, que poderia ser uma barreira cultural, fez brilhar os olhos do rapaz sírio. Bahiej gostou tanto de feijão tropeiro, pão de queijo, couve, feijoada e carne de porco que decidiu aprender a preparar os pratos.

“Nos fins de semana, meus amigos da Síria vão em casa e faço comida típica daqui. Eles adoram!”, conta. Com o rosto corado, Bahiej, que também chegou às terras mineiras em 2014, se diz apaixonado pelo novo país.Lucas PratesORGULHO – Perto de casa, na Barragem Santa Lúcia, Nadim faz questão de dizer que tem o registro de permanência no Brasil

 ‘Guerra vai muito além da disputa local’, afirma professor

Desde o início do conflito na Síria, com a insurreição da comunidade contra o presidente Bashar Al-Assad, em 2011, cerca de 4,9 milhões de sírios estão refugiados em outros países, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Especialista em políticas internacionais, Danny Zahreddine, professor da PUC Minas, explica que a guerra civil é de difícil solução porque envolve tanto as forças sírias quanto o governo e os insurgentes, além de atores internacionais. 

“A gente tende a acreditar que o fim do conflito depende só dos sírios, muçulmanos, cristãos e minorias. Mas se o povo sírio quisesse acabar com a guerra não conseguiria, porque ela vai além da disputa local. É uma disputa bem maior entre poderes regionais e globais e partidos políticos”, diz. 

Al-Assad, que está no comando do país desde 2000, enfrenta a oposição de rebeldes sírios, da maioria sunita e também dos Estados Unidos e da Arábia Saudita. O presidente é apoiado por cristãos e parte dos xiitas, além de ter o respaldo de Rússia e Irã. Zahreddine destaca, no entanto, que o conflito tem aspecto político muito mais forte do que religioso. 

“A Síria representa um obstáculo para os Estados Unidos, que não querem aceitar sua hegemonia regional. Retirar o Bashar Al-Assad significa garantir a entrada norte-americana no Oriente Médio. Já a Rússia tem uma relação comercial estratégica e política com a família Al-Assad há mais de 30 anos. O único porto russo para o mediterrâneo é na Síria, e eles querem manter essa influência”, explica.

O professor ressalta que a principal dificuldade para prosseguir no processo de avanço pela paz é chegar a um interesse comum a todos os círculos de poder dentro de seus objetivos e escalas. Zahreddine, que é libanês, acredita que o conflito poderia ser contido caso gerasse custos muito altos para todos os agentes envolvidos. Ele afirma que hoje a situação se aproxima de um estágio dessa natureza. 

“Creio que alcançamos um ponto em que os atores envolvidos começam a pensar numa tentativa de equacionamento, porque os enfrentamentos são muito intensos e impõem custos elevados”.Editoria de Arte

Histórico

A guerra civil síria teve início em março de 2011, com as manifestações populares contra o presidente Bashar Al-Assad. Ele pertence a uma minoria religiosa alauíta, que detém boa parte dos recursos econômicos do país. Al-Assad deu prosseguimento ao governo do pai, Hafez al-Assad, que comandou a nação por 30 anos. 

Na semana passada, o Papa Francisco manifestou repúdio ao que chamou de “ataque desumano” nas áreas da Síria, controladas por rebeldes; ele defendeu um cessar-fogo urgente e ainda afirmou que se preocupa em especial com as crianças, “presas debaixo de bombardeios cruéis”

Os insurgentes que pediam a renúncia do líder político começaram com protestos pacíficos, reprimidos pelo governo, e evoluíram para conflitos armados em toda a extensão do país. Inicialmente, grupos civis e paramilitares enfrentaram o Exército sírio e ampliaram as ofensivas para a capital, Damasco, e a cidade de Aleppo. 

No entanto, a guerra não se restringiu somente às forças locais. O combate tomou forma principalmente com a influência de agentes externos, como os Estados Unidos, financiadores de facções rebeldes contra Al-Assad, e Rússia e Irã, que oferecem ajuda militar ao governo. 

O contexto fragilizado e divergente que assolou o país favoreceu a ação de grupos extremistas, como o Estado Islâmico e a Frente Nusra, ligada à Al Qaeda. Os jihadistas começaram a realizar ataques para ampliar os domínios deles também na Síria. 

Na última quinta-feira, ao menos 17 pessoas morreram na explosão de um carro-bomba em um posto de controle rebelde na província de Aleppo. A explosão ocorreu perto da cidade de Azaz, não muito longe da fronteira turca. Dezenas de pessoas ficaram feridas, algumas gravemente.

Leia mais sobre os jovens sírios em BH na edição desta terça-feira (18)
 

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