Estatuto reacende debate sobre outros tipos de união e novas formas de amar

Iêva Tatiana - Hoje em Dia
04/04/2015 às 08:35.
Atualizado em 16/11/2021 às 23:30
 (Carlos Henrique)

(Carlos Henrique)

Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio do Censo, identificou mais de 60 mil uniões homoafetivas no Brasil. Foi a primeira vez que o levantamento considerou os relacionamentos de pessoas do mesmo sexo nas entrevistas. Mas se houve avanços de um lado, ainda há muitos desafios de outro. A maioria desses casais ainda enfrenta o preconceito.
“Na história da civilização, o diferente era nomeado como doente, para que a diferença fosse cada vez mais distanciada. A gente vive em uma sociedade que, a todo momento, quer se tornar igual, ter o que o outro tem, ser o que o outro é. A diferença sempre nos incomodou”, explica o professor de psicologia da Faculdade de Educação de Bom Despacho (Faceb), Felipe Viegas Tameirão. Ele ressalta que, mesmo assim, “não existe explicação nenhuma para a homofobia”.
A discussão sobre o assunto vem ganhando ainda mais destaque nos últimos dias, após o desarquivamento do Projeto de Lei (PL) 6.583/2013, de autoria do deputado federal Anderson Ferreira (PR/PE). O texto prevê, sobretudo, a criação do Estatuto da Família, que reconhece como núcleo familiar apenas aquele formado por casais heterossexuais e descendentes.
O projeto, em tramitação na Câmara dos Deputados, tem forte pressão da bancada evangélica e já rendeu mais de 5 milhões de votos em uma enquete feita no site da Casa. Até o fim da semana passada, pouco mais de 53% dos participantes manifestaram apoio à criação do estatuto, enquanto 45%, aproximadamente, eram contrários.
Efeitos
Outro episódio que trouxe a polêmica à tona foi o espancamento de um adolescente na Grande São Paulo. A agressão aconteceu no início do mês passado, por ele ser filho de um casal gay. O jovem não resistiu aos ferimentos e morreu. Na avaliação da professora de sociologia da Universidade Fumec Maria Helena Pereira Barbosa, o exemplo ilustra um dos problemas mais graves decorrentes da intolerância à homossexualidade.
“O maior desafio ainda é o preconceito da sociedade em relação aos filhos de pessoas do mesmo sexo. A família brasileira está passando por novas configurações. Se ainda vivemos somente o modelo de família tradicional, é um problema da nossa cultura, porque, nas demais, existem outras formas”, diz.
O gatilho mais recente para as manifestações homofóbicas foi o beijo lésbico protagonizado pelas atrizes veteranas Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, no primeiro capítulo da novela “Babilônia”, da Rede Globo.
“Nossa cultura tem a heterossexualidade como padrão, mas as relações entre as pessoas não estão contempladas dentro do olhar heteronormativo. No caso da novela, não sei o que choca mais: o fato de as duas serem mulheres ou o de serem velhas, porque a gente tende a achar que os idosos não fazem mais nada”, pondera Tameirão.
Casal de mulheres ficaria impedido de registrar filho   Para quem o preconceito já faz parte da rotina, a proposta de criação do Estatuto da Família é encarada como mais um desafio a ser enfrentado. A enfermeira do trabalho Thaís Sampaio-Fiúza, de 37 anos, está casada há 12 com a microempresária Lorena Fiúza-Sampaio, de 40, mas a oficialização da união veio somente em janeiro do ano passado.
“Oficializar era uma coisa que queríamos muito, porque é um direito de qualquer casal. Pouco antes, tínhamos pensado em assinar um contrato de união estável, mas, como os cartórios são obrigados a reconhecer o casamento, preferimos assim”, lembra Thaís.
Mães de dois adolescentes – Lucas, de 17 anos, e Laura, de 15 – filhos do primeiro casamento de Lorena, as duas aguardam a chegada de Lívia, concebida por meio de fertilização in vitro e gerada por Thaís, que sonhava ser mãe biológica. “Estamos tomando todas as providências para que possamos registrá-la com nossos nomes. Esse estatuto nos impediria de fazer isso (caso aprovado) e, às vezes, é nesses detalhes que há mais interferência”, lamenta a enfermeira.
Para o advogado de direito de família José Roberto Filho, o projeto é inconstitucional por contrariar o Superior Tribunal Federal, órgão máximo da Justiça, que já defendeu, em outras ocasiões, entidades familiares formadas por pessoas do mesmos sexo.
“Há segmentos da sociedade muito vinculados a questões religiosas. Nosso próprio ordenamento jurídico foi regulado por esses dogmas, mas as mudanças sociais fizeram com que o direito da família também mudasse”, afirma Filho.
O advogado não acredita na aprovação do estatuto. “Existe no direito uma vedação ao retrocesso social. As conquistas dos homossexuais já estão mais do que consolidadas”.
Confronto de ideias no meio político ganha intensidade
Se entre profissionais das ciências humanas a rejeição ao Projeto de Lei 6.583 parece unânime, no meio político a situação é outra. Entre conservadores, restringir o conceito de família àquelas formadas por duas pessoas de sexos opostos é correto. Para a ala liberal, a diversidade precisa ser respeitada.
A deputada estadual Marília Campos (PT) estará à frente de uma audiência pública, no próximo dia 9, na Assembleia Legislativa, para discutir as “novas” formações das famílias brasileiras. Segundo ela, o que determina os relacionamentos é o afeto e não os aspectos biológicos.
“Tenho uma formação de família tradicional, mas não está em julgamento o meu modelo familiar. Não devemos ter uma relação de imposição de concepção religiosa. Isso é autoritário e dissemina a intolerância”, afirma Marília.   Divergência
O deputado estadual João Leite (PSDB) recorre ao argumento cristão para defender seu ponto de vista. Assim como a formação da humanidade decorreu da relação entre homem e mulher, acredita, a legislação brasileira deve seguir reconhecendo apenas as uniões heterossexuais.
“Muitos falam da importância da educação. A não-formal começa na família, com referências do pai e da mãe. Eu acompanho aquilo que está colocado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na constituição. Por que mudar algo que constituiu nossa civilização? Não faz sentido”, defende.
De acordo com o professor de direito da Faceb, Haroldo Assunção, é natural que haja embates quando se vive um regime democrático, e é inevitável a influência da religião e da cultura na legislação. Mas, para ele, é nessas horas que se faz necessária a isenção de valores do direito.
“É importante lembrarmos de que quando uma entidade familiar formada por pessoas do mesmo sexo é reconhecida, o objetivo não é constranger ninguém, é apenas buscar soluções justas”.

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