Há um ano, história de morador de Bento Rodrigues foi apagada pela segunda vez

Ernesto Braga
eleal@hojeemdia.com.br
31/10/2016 às 19:10.
Atualizado em 15/11/2021 às 21:28
 (Flávio Tavares)

(Flávio Tavares)

Por 70 anos, Filomeno da Silva, que completará 83 em 1º de dezembro, ajudou a cuidar da igreja de São Bento, padroeiro de Bento Rodrigues, distrito de Mariana. Quando se aposentou, passou a dividir o tempo entre as reformas no imóvel inaugurado em 1718 e o cultivo de frutas no quintal da casa onde morava com a mulher, Tereza.

Nascido em Bento Rodrigues, Filomeno trabalhou mais de 40 anos na mineração e carrega duas tristes recordações. No fim da década de 70, viu a Vila das Mercês, habitada por quem trabalhava na mina de Alegria, também em Mariana, ser desativada para o armazenamento de rejeito proveniente do minério de ferro beneficiado pela Samarco no complexo de Germano.

A maior decepção de Filomeno, no entanto, o atormenta desde 5 de novembro de 2015, quando Bento Rodrigues foi riscado do mapa pela lama que vazou da barragem de Fundão, da mesma mineradora. “Da Vila das Mercês ficou a saudade pelas amizades e bailes que fazíamos nos dez anos que lá fiquei. De Bento, a angústia por ter perdido tudo que eu construí na vida”, lamenta o aposentado.

ROTINA PACATA
O drama de Filomeno e de tantas outras vítimas do maior desastre socioambiental do Brasil, que causou 19 mortes, quatro de moradores do extinto Bento Rodrigues, completa um ano. Até domingo, o Hoje em Dia publicará reportagens contando a história de quem ainda tenta retomar a rotina pacata do interior de Minas após a tragédia. 

Apenas de Bento Rodrigues, comunidade mais afetada, são 236 famílias (cerca de 650 pessoas). “Nossa casa tinha dois andares, mais a cobertura, e a lama passou dois metros acima. Só de jabuticaba eram 54 pés no quintal. Eram sete quartos. Quando tinha festejo em Bento, era uma das moradias em que os amigos visitantes mais gostavam de pernoitar. Isso me faz muita falta”, relembra Filomeno.

Quando morava na Vila das Mercês, ele ia todo fim de semana para Bento Rodrigues, ao encontro da família. De lá nunca mais arredou pé depois que se casou e teve três filhos. A história do aposentado sempre foi atrelada às festividades religiosas. “Comecei a tomar conta da igreja com 13 anos. Consertava o telhado, reformava o assoalho. Era uma parte importante da minha vida”, diz.

Garimpo de peças sacras alivia o desassossego do coração

Desde que Bento Rodrigues foi riscado do mapa, há um ano, o aposentado Filomeno da Silva se dedica ao resgate de peças sacras e partes do altar da igreja de São Bento, que foram levadas pela lama. Ficar atento ao “garimpo” das relíquias foi a forma que ele encontrou para minimizar a angústia por ter visto mais de oito décadas de conquistas soterradas.

À espera da construção do novo Bento Rodrigues, Filomeno está morando em uma casa do bairro São Gonçalo, em Mariana. Mas, acostumado a colocar a mão na terra, o aposentado não se adaptou à vida na cidade.

“Depois da tragédia, só tive desassossego. Perdi tudo e só ganhei um marcapasso”Filomeno da SilvaMorador de Bento Rodrigues

“Depois da tragédia, só tive desassossego. Sofri um princípio de infarto e fui levado para Belo Horizonte, onde fiquei internado 21 dias. Lá, o problema se repetiu, e só não foi pior porque estava dentro de um hospital. Mas precisei colocar um marcapasso”, diz.

ORNAMENTAÇÃO
Filomeno devolveu à equipe de arqueólogos contratada pela Samarco uma das colunas de cedro que ornamentavam o altar do século 18. Os especialistas trabalham na localização e restauração de peças da igreja.

“A coluna foi encontrada por um amigo na lama que descia o rio Gualaxo (do Norte) em Paracatu de Baixo. Espero que construam uma igreja bem semelhante no novo Bento”, diz.Flávio TavaresTRISTE CENÁRIO – Pouca coisa sobrou da escola de Bento Rodrigues, destruída pelo rejeito que vazou da barragem de Fundão


Arqueólogos resgatam parte do acervo da igreja do século 18
A primeira tarefa da equipe comandada pelo arqueólogo Vinícius Castilho foi retirar toda a lama que encobriu a igreja de São Bento. Em seguida, foram iniciadas as buscas por imagens sacras e partes do altar.

Com a ajuda de voluntários, 1.925 peças tinham sido localizadas até a semana passada. “São pedaços da igreja e imagens dos santos”, diz Castilho. Todo o acervo está sendo levado para Mariana, para restauração.

O trabalho dos especialistas não ficou restrito à área onde foi erguido o templo do padroeiro de Bento Rodrigues. “Foram localizadas peças a mais de 100 quilômetros daqui”, destaca o arqueólogo.

Segundo Castilho, as peças encontradas servirão de modelo para que o templo que será erguido no novo Bento Rodrigues tenha ornamentação semelhante. “Isso é possível”, afirma o especialista.

Leia nesta quarta-feira (2): a angústia de quem perdeu um familiar na tragédia de Bento Rodrigues e o que sobrou do distrito

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