Vinte anos do movimento da Polícia Militar que marcou Minas Gerais

Tatiana Lagôa
tlagoa@hojeemdia.com.br
30/06/2017 às 21:33.
Atualizado em 15/11/2021 às 09:20

Marcelo Sant’anna / Arquivo Hoje em Dia / N/A

Militares tentam ajudar o colega Valério dos Santos atingido com um tiro na cabeça durante o motim

Quando levou um tiro na cabeça ao tentar acalmar os ânimos de outros militares na maior manifestação da história da categoria, o cabo Valério dos Santos Oliveira carregava no bolso o número de telefone do amigo Gilson. O rapaz era apenas mais uma das inúmeras pessoas que o policial ajudou a superar uma fase difícil com auxílio da religião. Agora, passados 20 anos da morte que mudou a realidade da PM no Estado, o praça volta a amparar, indiretamente, outros mineiros por meio do Instituto Cabo Valério (ICV). 

Criada há um ano, a instituição dará assistência a militares e familiares que sofrem com dependência química. O projeto está em fase de amadurecimento e deverá sair do papel em breve, segundo um dos fundadores Luiz Gonzaga Ribeiro. Por enquanto, o ICV tem feito um trabalho de orientação de alunos do Colégio Tiradentes com dificuldade de aprendizado.

“O instituto faz com que não percamos a dimensão da importância do cabo Valério na conquista da nossa cidadania e busca ajudar outros militares”, afirma o deputado federal subtenente Gonzaga.

Se estivesse vivo, o cabo que virou símbolo do movimento reivindicatório de 1997 certamente aprovaria a iniciativa, segundo a viúva Carmem Suelma Paula de Oliveira, de 51 anos. “O Gilson, que ele tinha o telefone, foi um homem que estava brigando com a esposa a ponto de chamarem a polícia. Ao invés de prendê-lo, Valério o ajudou. Depois, viraram amigos”, conta.

Em outra situação, Valério chegou a ganhar um carro de um homem agradecido pelas orações direcionadas a ele. Com a vida difícil e o baixo salário de militar da época, o Opala branco foi o único veículo que o cabo teve na vida. Aliás, a remuneração foi um dos motivos que levou milhares de policiais a cruzar os braços e ir às ruas naquele ano, no primeiro motim da categoria no país. 

“Tínhamos colegas morando em lonas, em banheiros da rodoviária em uma situação salarial que beirava a miséria. Muita gente fazia bicos para sobreviver e, estressados, muitos suicidaram”, acrescenta o subtenente Gonzaga.

Após motim, categoria conquista direitos

A morte do cabo Valério dos Santos Oliveira colaborou para o fim do motim. Os militares receberam um aumento de 48% nos salários. O movimento de 97 serviu de exemplo para policiais de outras partes do país e mudou as regras da corporação mineira. A categoria ganhou visibilidade e direitos nunca imaginados.

Para a esposa e os dois filhos de Valério, que na época tinham 6 e 9 anos, o cabo deixou um apartamento, um carro e o exemplo. “Sempre que tenho uma decisão a tomar penso se meu pai aprovaria. Era tão especial que quando eu e meu irmão brigávamos, ele nos fazia ficar abraçados no meio da sala até fazer as pazes. Ele nos fazia dizer que nos amávamos”, conta o caçula Danilo Kennedy de Oliveira, de 26 anos.

O rapaz, que hoje é estudante de direito, teve que parar de estudar por um ano para trabalhar. Também fez terapia por seis anos para superar o trauma. O irmão Felipe Douglas de Oliveira, hoje com 29 anos, deixou os estudos definitivamente aos 16 quando começou a panfletar. A pensão que a família tinha direito só começou a ser recebida quatro anos após a morte do militar, em 2001.

Conquistas

Em 1997, o Regulamento Disciplinar da PM, apelidado de “amarelinho” devido à cor da capa, tirava o sono dos militares. Ele instituía, por exemplo, que subordinados precisavam pedir autorização de comandantes para se casar ou viajar. Além disso, quem descumprisse as normas poderia ser preso. 

“Nós tínhamos um regulamento arcaico que permita a prisão de 2 a 6 anos em caso de ofensa a superiores”, conta o deputado estadual sargento Rodrigues. O parlamentar foi relator do Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais que, em 2002, substituiu o “amarelinho”. Nele, a pena de detenção foi excluída.

Esse despertar é um dos assuntos levantados por Francis Albert Cotta. Ele estuda o assunto desde a pós-graduação em História do Brasil Contemporâneo, em 1998. Agora, se prepara para lançar um livro, que deverá ser editado em agosto. Uma das conclusões que o doutor em história chega é que o movimento serviu de impulso para emancipação dos policiais.

Eles passaram a se ver como atores sociais e sujeitos de direitos, elegendo inclusive representantes em cargos de poder. A partir daí conquistaram direitos como auxílio moradia, alimentação fixa, dentre outros, como pontua o autor.

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