Estrutura precária das unidades hospitalares públicas é desafio para a saúde brasileira

Tatiana Lagôa
tlagoa@hojeemdia.com.br
18/12/2017 às 06:00.
Atualizado em 03/11/2021 às 00:17
 (Leo Martins/AMB/DIVULGAÇÃO)

(Leo Martins/AMB/DIVULGAÇÃO)

Com baixo financiamento, o setor da saúde está à beira de um colapso no Brasil. Faltam insumos básicos, equipamentos e leitos. Doenças erradicadas voltam à tona e, pressionados com a ausência de estrutura no trabalho, até os profissionais e estudantes da área têm adoecido, chegando até ao extremo do suicídio. É nesse contexto que o cirurgião mineiro Lincoln Lopes Ferreira assume a Associação Médica Brasileira (AMB). Em entrevista exclusiva ao Hoje em Dia, ele fala dos desafios do setor, que passam por mais recursos e melhorias na formação dos profissionais da medicina.

O senhor acabou de assumir a presidência da AMB. Quais os desafios a serem enfrentados?
O setor de saúde no Brasil vem se notabilizando pelos desafios nas políticas, financiamento inadequado, má qualidade do serviço prestado, ausência de políticas responsáveis para a saúde. Ou seja, cada governante, ao assumir o ciclo de quatro anos, tende a refazer o que os demais fizeram e, dessa forma, não temos uma política continuada que permita o combate eficaz às pragas, doenças e desnutrição, que demandam planejamento de médio e longo prazos.

De quais maneiras a associação pode tentar diminuir esses problemas?
Um ponto inicial que nós temos para debater é sobre atuar na qualidade da formação do médico. O país claramente extrapolou a capacidade de formar médicos em condições adequadas. Não temos médicos doutores, laboratórios, clínicas e hospitais em volume suficiente para atender as escolas médicas que vão se abrindo. Consequentemente, atentar para a qualidade do ensino é fundamental. Porque não adianta simplesmente colocar médicos nos municípios, se esses profissionais estão despreparados. É fundamental que tenhamos a atuação junto aos ministérios da Educação e da Saúde para que possamos garantir a formação adequada do médico.

“A maioria das vezes que se diz ‘judicialização da saúde’ está se referindo às pessoas que entram na Justiça para obter tratamento, atendimento ou medicamento”

O senhor acredita que o aumento dos processos judiciais na saúde passa por essa má formação?
Com respeito à responsabilidade profissional, vemos um aumento das denúncias. A maioria infundada porque é baseada em resultados esperados pelas pessoas. Mas a medicina não é uma ciência exata. No entanto, à medida em que a formação do médico fica carente, o que se espera é um crescimento progressivo de denúncias.Leo Martins/AMB/DIVULGAÇÃO / N/A


E o outro desafio a ser enfrentado na saúde é a falta de financiamento?
Exatamente. A saúde brasileira, a partir da instituição do SUS, deu um passo para o resgate da cidadania, já que hoje todo mundo tem direito à assistência médica. Mas, para fazer um programa dessa natureza, alguns requisitos são fundamentais, sendo um deles o correto financiamento. Nenhum dos países que mantêm sistemas de assistência à saúde deixa de arcar com menos de 75% do orçamento global da saúde. O SUS nasceu com defeito de fábrica. O governo federal, que é o maior ente arrecadador do país, arca com 48% do financiamento total. Ou seja, mais da metade do financiamento vem de outras fontes.

E com a crise econômica e menor orçamento da União, Estado e municípios, o financiamento para o setor ficou ainda menor?
Como não foi possível contratar gestores de qualidade, a solução encontrada foi a dos Mais Médicos. Trazer de fora indivíduos do quais não se sabe a formação, não falam nossa língua, não têm maneiras de serem fiscalizados pelos conselhos por não terem diploma no país e colocá-los pelo país afora, na teoria, onde não haveria médicos. Mas, na prática, a distribuição segue rigorosamente a dos médicos brasileiros. Ou seja, qual a cidade mineira com mais médicos? BH. E a com maior número de médicos do programa? BH.

Então quer dizer que a escassez de médicos em lugares mais distantes não foi amenizada com o Mais Médicos? E qual seria a solução?
Em 49% das cidades onde foi implantado o Mais Médicos tem menos profissionais hoje do que no início do programa. O Tribunal de Contas da União (TCU) foi buscar quais indicadores de saúde melhoraram com o programa e não achou nenhum. O TCU procurou também quem era o responsável pela atuação dessas pessoas e não encontrou. Por isso, desde o começo, nossa proposta é que seja instituída a carreira médica do Estado.

“Sem a estrutura necessária, o médico se vê reduzido à condição de espectador privilegiado e angustiado do sofrimento humano”

Como seria essa carreira médica?
A carreira médica de Estado seria instituída a partir de emenda constitucional que está pronta para ser votada após passar por todas as comissões. Prevê ingresso por concurso com a definição de onde os médicos vão atuar. A pessoa que vai para localidade muito remota sabe o tempo que vai ficar, tem um plano de carreira estabelecido, o salário previamente conhecido e não vai ficar aos sabores da corrente política do município. Carreira é fundamental já que temos que instituir políticas de Estado para a saúde, caso contrário, não vamos conseguir erradicar epidemias como a de dengue, que já tinha sido erradicada. Hoje começam a aparecer casos de raiva, febre amarela e sífilis congênita, resultado da falta de medicamentos que custam baratíssimo. É coisa do século 18.Leo Martins/AMB/DIVULGAÇÃO / N/A


E diante da falta de recursos, como está a estrutura da saúde e as condições de atendimentos?
No final de 2015 para 2016 nós já falávamos sobre as dificuldades da saúde sobre a crônica falta de financiamento das estruturas que estavam mais degradadas e criamos a expressão que era o “apagão da saúde”. As condições vão se degradando cada vez mais. O conjunto dos hospitais filantrópicos está à beira de fechar as portas, infelizmente, por falta de insumos e de mínimas condições. O país está em crise econômica e política. Nesse cenário ruim, tratamentos são adiados, doenças que eram curáveis deixam de ser, tratamentos que poderiam ser feitos sem sequelas passam a deixar e, finalmente, aparecem as mortes evitáveis. E algo que não é menos importante é uma política de tentar atribuir ao médico a responsabilidade para as mazelas. O médico tem que ser responsabilizado pelas atitudes e não por condições inadequadas de trabalho. Vai trabalhar sem saber se vai ser agredido, intimidado e se vai receber ou não no fim do mês.

“O conjunto de hospitais filantrópicos está à beira de fechar as portas, infelizmente, por falta de insumos e de mínimas condições”

  

Essa pressão da falta de estrutura é o que tem adoecido boa parte dos profissionais?
Normalmente, você entra na faculdade de medicina com 17, 18, 19 anos. Estuda durante seis anos, depois mais quatro. Estudos árduos que exigem muito. Na flor da juventude, colegas estão indo para bailes e os estudantes de medicina para o plantão. Na residência, é mais intenso. Ao final de 10 anos, de um investimento grande econômico e, do ponto de vista pessoal e intelectual, você vai trabalhar em um lugar sem condições. Sem a estrutura necessária, o médico se vê reduzido à condição de espectador privilegiado e angustiado do sofrimento humano. Ninguém tolera essa situação. Você pensa que se dedicou na melhor parte da vida para salvar o ser humano e está limitado e responsabilizado pela estrutura inadequada. É publicamente taxado de financista, de não gostar de pobre. Essa pessoa vai deitar à noite, ver que se dedicou e que ganha em troca acusações. 

E podemos dizer que boa parte das mortes que acontecem nos hospitais ocorrem pela falta de estrutura?
O que ocorre é que as instituições fecham as portas. Não que não existam mortes evitáveis, mas não consigo dizer se isso esteja em um patamar significativo. As mortes evitáveis têm ocorrido por falta de estrutura e dificuldade de acesso. A pessoa chega em um hospital que está lotado porque deveria atender dez pessoas, mas tem cinquenta. Até conseguir encaixar, perdeu a chance terapêutica.

A falta de medicamentos está trazendo de volta doenças que já tinham sido erradicadas. Isso tende a se agravar?
Na medida em que o tempo vai passando, a política não muda e o financiamento adequado não vem, ocorre o processo de deterioração na assistência à saúde cuja evidência é exatamente essa. Nós temos o ressurgimento de tuberculose, maior incidência de lepra, retorno da raiva, agora sífilis congênita, leishmaniose tem sido assassina quase invisível, que tem matado cada vez mais. Se não houver mudança e planejamento, as dificuldades tenderão a acentuar. 

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