Nem de brincadeira: campanha 'Criança não namora...' alerta para os riscos da erotização infantil

Patrícia Santos Dumont
pdumont@hojeemdia.com.br
21/04/2017 às 11:34.
Atualizado em 15/11/2021 às 14:13

Comentários de natureza sexual feitos por adultos e direcionados a crianças são, quase sempre, interpretados como brincadeiras inocentes. No universo infantil, porém, perguntas aparentemente despretensiosas, como “quem é seu namoradinho na escola?”, podem ganhar outra conotação e virar gatilho, inclusive, para a erotização precoce. 

Para alertar sobre os riscos de expor meninos e meninas muito jovens a condutas próprias da idade adulta, sobretudo quando o assunto são as relações amorosas, o Governo do Amazonas lançou, no início do mês, a campanha “Criança não namora! Nem de brincadeira”. 

O movimento, até então restrito às redes sociais, ganha, a partir de maio, contornos mais sérios, quando o assunto passará a ser discutido também nas instituições de ensino do Estado. A campanha foi inspirada em um texto publicado pela professora carioca Dany Santos no Facebook. Ela é autora do blog Quartinho da Dany, que aborda temas como maternidade consciente. 

Foco na causa

Um dos responsáveis pela ação, o psicólogo Luiz Coderch, coordenador dos Centros Estaduais de Convivência da Família e do Idoso, vinculado à Secretaria Estadual de Assistência Social do Amazonas (SEAS-MG), diz que o objetivo central do projeto é evitar que problemas mais graves se instalem. 

A ideia é que o debate aconteça em âmbito nacional. “Quando se fala em violência contra criança e adolescente, a primeira coisa que vem à cabeça são as questões jurídicas: prender o abusador. O que queremos é atuar na prevenção. A criança muitas vezes é vítima por falta de orientação. Aos pais cabe compreender que certos comportamentos não devem perpetrar a infância. Mais do que isso: deixar tudo bem claro aos filhos”, reforça. 

Reação na internet

Apesar de ter provocado uma enxurrada de comentários negativos, muitos contrários ao mote da campanha, o movimento angariou uma legião de apoiadores. Pais e mães do país inteiro, que reconhecem e compartilham da importância de dizer não a comportamentos considerados inadequados na infância. Laís Gouvêa/Divulgação

Nina, de 2 anos e meio, tem nos pais, Renata e Vinícius, guardiões da infância; qualquer assunto referente a sexualização precoce passa longe da menina

É esse o caso da advogada Nádia de Castro Alves, de 35 anos, mãe de Bruno, de 5, e de Maria Carolina, de 2. “Sempre achei um absurdo essas coisas de namoradinho, de dizer que a menina vai ser ‘fornecedora’. Nunca estimulei, mas, claro, já aconteceu várias vezes, normalmente na família. Converso abertamente com ambos e explico o que é adequado para cada fase da vida”. 

A psicóloga Renata Magliocca, de 34 anos, e o marido, o professor universitário Vinícius Maltarollo, de 31, compartilham da mesma opinião. Na casa deles, Nina, de 2 anos e meio, é incentivada a cultivar amigos. 

“Não é mimimi nem aquela coisa do politicamente correto. É uma questão de respeitar os caminhos e escolhas da criança. Precisamos dar o tom dessa relação tão incrível que é a amizade”, comenta Renata.

Divulgada no Facebook pelo Governo do Amazonas, a campanha teve quase 500 mil compartilhamentos em cerca de 15 dias; o perfil recebeu mensagens privadas de pais e mães do país inteiro

 Diálogo sem ‘forçar a barra’ é orientação mais adequada 

Deixar a descoberta da sexualidade para o momento mais oportuno e abrir o jogo sobre o que pode e não pode sem supervalorizar uma coisa ou outra é o caminho mais adequado para evitar uma hiperssexualização nas crianças. 

Segundo a psiquiatra infantil Ana Christina Mageste, do Departamento de Psiquiatria Infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), é importante ter em mente que o desenvolvimento normal da criança inclui relacionamentos. Com o sexo oposto, inclusive. Aos pais, alerta, é preciso discernimento para dosar informações. A especialista se diz favorável a essa e outras campanhas, desde que os argumentos não sejam tão radicais, mas ponderados. 

“Tem que haver mais conversa. Por que ao invés de questionar se a criança tem um namoradinho não se pergunta se ela tem um melhor amigo? O interesse nos relacionamentos faz parte do desenvolvimento natural. Nós, adultos, é que não podemos supervalorizar isso e dizer que a criança está errada”, afirma.

A especialista explica ainda que é entre os 3 e 6 anos que a criança passa a perceber e distinguir as diferenças entre meninos e meninas. Nessa fase, é importante manter claro o que é adequado a cada idade. Por volta dos 11, 12 anos começa a surgir um interesse sexual maior pelo outro.

"O segredo é compreender o que está aparecendo, mas não impedir, proibir, deixando estar presente da maneira mais adequada ao que é melhor aceito. A família é que deve demonstrar aonde vai o limite”, detalha a psiquiatra, membro do conselho consultivo da Federação Latino-americana de Psiquiatria da Infância, Adolescência, Família e Profissões Afins (Flapia).

Depoimentos:

Dany Santos, autora do blog Quartinho da Dany

“Criança namora sim. Namora porque ama sem preconceito, com pureza. Quando a criança diz que namora está simplesmente demonstrando um gostar maior. Hoje tudo é proibido. Nossa sociedade está cada vez mais babaca e careta.” - Comentário no Facebook sobre a campanha

“Precisamos respeitar a individualidade, assim como fazemos com o jeito de vestir, a alimentação e a escolha da escola. Isso tem que aparecer antes que as brincadeiras comecem. Para mim, esse tipo de brincadeira tem um direcionamento implícito daquilo que se espera da criança, é a expectativa do adulto.” - Renata Magliocca, psicóloga

“Na minha opinião, amor não tem momento, você não escolhe de quem gosta, por quem sente atração e muito menos o momento em que isso acontece. Não tem essa de só poder namorar depois de certa idade. Namoro de criança é uma brincadeira, eles não levam a sério”. - Comentário no Facebook sobre a campanha

“Educação é respeitar os limites e interesses da criança, um ser humano igual a nós, mas, obviamente, com interesses diferentes dos nossos. Eles gostam de temas e coisas infantis e enquanto não aprendem sobre namorado não vão querer saber disso. Tudo isso não passa de atropelo de fases. Uma pena.” - Vinícius Maltarollo, professor universitário

“No último Natal, perguntaram para o meu mais velho: quem é sua namoradinha na escola? Pelo amor de Deus, ele só tem cinco anos!” - Nádia de Castro Alves, advogada

Entrevista:

Luiz Coderch – psicólogo na Secretaria de Assistência Social do Amazonas

Existe uma idade recomendada, a partir da qual os pais podem deixar fluir com mais naturalidade conversas, atitudes e até gestos que possam ser interpretados do ponto de vista sexual pelos filhos?
Existem classificações de criança, adolescente, jovem adulto e adulto, mas prefiro abordar de outra maneira. Não é que os pais não possam ter demonstrações de afeto na frente dos filhos, importante é explicar a eles o que é próprio de cada idade, que casais adultos se beijam na boca como forma de trocar carinho, mas que crianças devem se beijar no rosto ou se abraçar. Se a criança é orientada, não repete aquele ato. Para cada idade há uma conduta.

Beijar o filho ou filha na boca, então, é uma conduta reprovada por psicólogos e que deve ser evitada?
Sim. Mas não é somente esse comportamento, isoladamente. Se a criança vê pai e mãe beijando na boca dela, entende que aquilo é natural e passa a fazer o mesmo com os colegas da escola, na rua. Começam aí problemas mais graves. As pessoas consideram beijo na boca como algo normal, como se fosse na bochecha, mas não é bem assim, basta buscarmos orientação com sexólogos. Beijo na boca é preliminar de um ato sexual.

A grande questão é que muitos adultos consideram esse e outros atos para com as crianças como algo inocente. Até que ponto essas “brincadeiras” podem realmente interferir na formação de uma criança e torná-la um adulto diferente daquele que os pais imaginavam que se tornasse?
O mundo infantil é cheio de brincadeiras e todas são inocentes. O problema é que essas brincadeiras determinam o comportamento do adulto. Se coloco nelas conteúdos adultos, estou pulando fases, desrespeitando o desenvolvimento infantil. Realmente, os pais entendem como sendo algo natural ou inocente, mas não são. Crianças não têm conteúdo emocional suficiente para ter esse discernimento. É preciso pensar com a mentalidade delas e não como um adulto. 

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por