O cardeal que enfrentou a ditadura

16/12/2016 às 18:59.
Atualizado em 15/11/2021 às 22:07

Em janeiro de 1970, o então bispo auxiliar, dom Paulo Evaristo Arns, da ordem dos franciscanos, era responsável pela Pastoral Carcerária, e conseguiu, enfim, visitar-nos no Presídio Tiradentes, em São Paulo. Na presença do diretor da prisão, nós, frades dominicanos presos, denunciamos as torturas durante os interrogatórios. Um ano depois, já nomeado arcebispo pelo papa Paulo VI, dom Paulo denunciou a prisão do padre Giulio Vicini e da agente pastoral Yara Spadini. Encontrados com manifestos de protesto contra a morte do operário Raimundo Eduardo da Silva – que se achava recolhido ao Hospital Militar à disposição das autoridades policiais –, foram torturados no Deops. O arcebispo invadiu a repartição e conseguiu avistar-se com os dois, que lhe mostraram as marcas das sevícias. Indignado, mandou afixar em todas as paróquias da arquidiocese nota em defesa dos presos e de denúncia das torturas sofridas. Dom Paulo jamais conheceu o medo. Em maio de 1971, ao ser recebido pelo general Médici, no Palácio do Planalto, lhe relatou casos de torturas. O ditador, com a rispidez que o caracterizava, não se fez de rogado e reiterou: “Elas existem e vão continuar porque são necessárias. E a Igreja que não se meta, porque o próximo passo será a prisão de bispos...” Quando fizemos greve de fome coletiva, em maio de 1972, dom Paulo foi nosso mediador junto às autoridades. Estávamos na Penitenciária do Estado, misturados aos presos comuns. Não nos permitiram vê-lo. Em encontro com o juiz Nelson Guimarães, do Tribunal Militar, o arcebispo questionou-o: “O senhor sabe que é responsável pela vida dos presos?”. O juiz auditor assentiu: “Assumo a responsabilidade se vierem a morrer”. Dom Paulo retrucou: “Meu filho, assume dois ou três dias. Depois, não assume mais. Sua consciência passa a martirizá-lo. E que contas dará o senhor perante si mesmo e perante Deus?”. O juiz respondeu de cabeça baixa: “O senhor tem razão”. Quando o jornalista Vladimir Herzog foi “suicidado” na prisão, dom Paulo decidiu celebrar missa solene na Catedral da Sé em homenagem a ele. Judeus que apoiavam a ditadura tentaram demover o cardeal: “Por que missa para Herzog? Ele era judeu!”. Dom Paulo respondeu: “Jesus também”. O cardeal Paulo Evaristo Arns era um dos homens mais corajosos que conheci. Imbuído da fé que caracterizou seu patrono e modelo, Francisco de Assis, jamais pensou no próprio sucesso. O mesmo cuidado amoroso que são Francisco dedicava aos pobres e à natureza, dom Paulo estendeu às vítimas da repressão. A resistência à ditadura que nos governou 21 anos deve muito à figura ímpar de dom Paulo. O livro “Brasil: Nunca Mais” é uma radiografia irrespondível da ditadura, graças à iniciativa de dom Paulo e do pastor Jaime Wright, que promoveram uma devassa nos arquivos da Justiça Militar. Analisaram o conteúdo de mais de um milhão de páginas de processos políticos. A anistia ainda evita que torturadores paguem por seus crimes. Mas, graças a esses dois pastores, não se apagarão da memória brasileira o terror de Estado e o sofrimento de milhares de vítimas. Dom Paulo Evaristo Arns rezou, com a vida, a oração de São Francisco de Assis, adaptada aos nossos tempos: “Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver... repressão e pobreza, que eu leve liberdade e justiça”.

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