Oração do Soneca

03/07/2018 às 19:00.
Atualizado em 10/11/2021 às 01:10


“Soneca” era um apelido quase carinhoso. Aquele policial era assim chamado desde o dia em que fora encontrado em sono profundo na viatura. Só não houve consequências disciplinares porque o fato ocorrera durante uma instrução e o superior hierárquico, pessoa justa e generosa, compreendera que, nas duas noites anteriores, o “Soneca” não havia dormido, pois estava cuidando da mãe num hospital. Ele dava mostra de não se importar com o apelido. Mas gostaria que os colegas o chamassem pelo nome mesmo.

E o nome dele era... era... Ah, leitor, o nome dele eu não digo nem sob tortura. Tentando desvincular-se daquele chamamento, ele se mostrava sempre alerta. Era o primeiro a chegar à unidade policial; era voluntário para quaisquer missões; era participativo na prática desportiva. Quando foi escalado para trabalhar no plantão, chegou a perguntar ao coordenador se a escala era uma punição. Aquele serviço lhe parecia mesmo um castigo. 

Até os colegas comentavam: 

–“Mas você... um policial tão ativo”. 

E, no íntimo, ele queria pedir: 
– “Então, pare de me chamar de Soneca”. Mas, se assim agisse, aí é que o apelido ia se perpetuar. Cumprindo sua tarefa no plantão, permaneceu assentado à mesa. Era um daqueles dias antecedidos de duas noites sem dormir para cuidar da mãe no hospital. E veio o inevitável sono. Então, ele apoiou a testa sobre as duas mãos, postas como alguém que está rezando. E – acredite, leitor – ele dormiu nesta posição. O coordenador chegou para consultar o livro de plantão e o chamou. E nunca foi tão adequado chamá-lo pelo apelido.

– Soneca. E nada de resposta. O coordenador chamou novamente e... nada. E chamou mais uma vez em alto tom. Nada também. Então, ele deu um grito ensurdecedor. O tremor do Soneca era o sinal inconfundível de quem acaba de acordar. Calmamente ele levantou uma das mãos e fez um sinal para que o coordenador aguardasse. 

Passaram-se uns dez segundos que pareciam uma eternidade. Então, ele respirou profundamente... e fez o sinal da Cruz seguido da tradicional oração da Igreja Católica: “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, amém”:
- Pois não, senhor coordenador. Eu só estava concluindo a minha oração.

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