“É preciso defender a separação entre Estado e religião”, diz professor do Ibmec

Raul Mariano - Hoje em Dia
Hoje em Dia - Belo Horizonte
12/01/2015 às 09:04.
Atualizado em 18/11/2021 às 05:38
 (Frederico Haikal/Hoje em Dia)

(Frederico Haikal/Hoje em Dia)

O atentado à revista “Charlie Hebdo”, em Paris, na última quarta-feira, chocou o mundo e colocou em debate novamente as relações entre oriente e ocidente. Relações conflituosas que extrapolam o território político e são fortemente influenciadas pelo extremismo religioso. Para o professor do Ibmec e doutor em Relações Internacionais Oswaldo Dheon, essa situação coloca em evidência a necessidade de se estruturar a separação entre Estado e religião e a construção de uma nova política internacional.


O que muda nas relações diplomáticas dos países muçulmanos com o restante do mundo, sobretudo com a Europa a partir de agora?

Eu acho que deve haver uma escalada contraterrorista por parte do G8 e da União Europeia. A mobilização deu ao ato criminoso uma característica de terror. Isso replicou nos jornais do mundo inteiro porque o ato foi feito contra jornalistas e artistas. Gerou uma ideia de ataque contra a liberdade de expressão. A região mais explosiva do mundo hoje é a Europa. Há um aumento da islamofobia, do racismo, da xenofobia, dos partidos de direita. Há insatisfação generalizada com o modelo econômico adotado, desemprego, baixo crescimento, uma receita mais do que batida de contenção de gastos públicos e nada disso conseguiu mudar o cenário político econômico da Europa. A situação é dramática.


Não foi a primeira vez que o “Charlie Hebdo” sofreu ataque de radicais do Estado Islâmico. Por que a postura de um veículo de imprensa humorístico incomoda tanto os radicais? Quais são as razões históricas para que o fundamentalismo religioso, em pleno 2015, ainda seja tão vivo?

O humor da revista “Charlie Hebdo” é muito cáustico. No Brasil, por exemplo, não temos revistas como essa. Na França, há tradição do Estado laico e uma grande parcela da sociedade tem uma visão ateística ou distante da religiosidade, a despeito da França católica. Então há uma longa tradição no jornalismo francês de poder criticar as religiões e a maneira pela qual elas tentam impor suas regras ao Estado. A revista apresentava cartuns bastante críticos e os radicais com visão conservadora se incomodaram com isso.


A Frente Nacional francesa, partido da ultradireita que vem ganhando força sob o comando de Marine Le Pen, já deixou claro que está focado em assumir o Palácio do Eliseu em 2017. O atentado contra o “Charlie Hebdo” fortalece esse partido conservador?

Eles foram ao longo do tempo organizando o discurso. A Marine Le Pen já deu uma série de declarações que causaram furor nas redes sociais, gerando reações negativas, dizendo que esse seria o momento de mostrar que a Frente Nacional tem a melhor alternativa para a França. Isso é o absurdo dos absurdos porque mostra que há um grande uso político por parte da Frente Nacional desse tipo de situação. A revista, vale lembrar, era uma revista de esquerda bastante tradicional. Isso gera implicações que podem beneficiar os dois lados no país. O ponto é que não há um problema em relação aos estrangeiros como um todo. Os islâmicos têm destaque, mas também os brasileiros são mal vistos. Há problemas com pessoas do leste europeu, que temem pessoas vindas de outras regiões para retirar o que lhes dá estabilidade. Quando a Europa crescia e havia demanda de fora, não havia problemas com turcos, paquistaneses ou iraquianos. Mas agora a situação está crítica. É o mesmo caso dos argelinos na década de 1950, que faziam parte da frança mas não tinham os mesmos direitos.


Episódios como a decapitação de jornalistas americanos por membros do Estado Islâmico aumentaram em quase 70% o apoio popular aos bombardeios no Iraque e na Síria. A mudança da opinião pública com relação a reações armadas pode influenciar diretamente as decisões dos governos de países afetados?

É fácil criar uma visão negativa contra os extremistas islâmicos esquecendo do que acontece na Ásia e Oriente Médio. São muito simplórias as declarações que tentam ideologizar o islamismo descontextualizando a ideia de que vivemos em uma sociedade global. A relação entre a Europa e o Oriente Médio diz muito sobre a própria presença de grupos sociais que têm identidades religiosas e que são defensores de direitos. Nem todos eles aprenderam com as democracias liberais a ir de quatro em quatro anos, de cabeça baixa, votar em um candidato e depois voltarem felizes da vida para votarem novamente. Isso é o nosso estilo, não o deles. Há países como a Turquia que avançaram, mas não dá para criar estigmas nem ideologizar essa situação entre oriente e ocidente. A sociedade global é absolutamente não inclusiva, com uma série de problemas políticos aparecendo em todas as partes do mundo, com trapalhadas diplomáticas cometidas por várias potências, principalmente as europeias. E há ainda uma dificuldade de sociedades como França, Alemanha e Reino Unido em reconhecerem que são muito mais multiculturais do que foram no passado.


O Estado Islâmico já havia prometido vingança contra a França publicamente antes do atentado. Que tipo de esforço diplomático pode contribuir efetivamente para impedir que novos ataques terroristas anunciados aconteçam no país e em toda a Europa?

O Estado francês protegia – de uma maneira menos efetiva do que deveria – os cartunistas desde o primeiro atentado contra a redação do jornal em 2011. Mas, ao longo do tempo, as ameaças foram diminuindo e a proteção também. O problema é compreender exatamente a dimensão da ameaça e entender que ela não é estatal, com os mecanismos da dissuasão tradicionais. Na Europa eles não se organizam da mesma forma que se organizaram para o 11 de setembro. Eles se organizam em pequenas células e não têm noção do que estão fazendo do ponto de vista da hierarquia. Então não há mais logística nem um longo planejamento. Hoje os terroristas agem de forma bastante descentralizada e isso dificulta o monitoramento antiterrorista. O que pode ajudar é o setor de inteligência e não exatamente o que temos observado na TV. Esses comandos armados podem matar terroristas, como vimos, mas eles não são eficazes para matar o terrorismo. O que pode diminuir sensivelmente o terrorismo é uma grande cooperação internacional no que diz respeito à cibersegurança.


Como o Brasil se encaixa nesse contexto de forma diplomática? Vamos passar ilesos por tudo isso?

O novo chanceler Mauro Vieira tem agora uma oportunidade de mostrar que esse governo tem interesse na área internacional com questões diplomáticas. O Brasil precisa demonstrar sua vocação para fugir da disputa ideológica em torno das regiões demonstrando toda nossa boa vontade e tolerância com o mundo islâmico. É de se esperar que a presidente e chanceler demonstrem todo apoio aos franceses, até porque há uma infinidade de brasileiros vivendo na França. Nesse momento, valeria a pena uma aproximação multilateral no intuito de aumentar o cerco contra o terrorismo, já que o Brasil não está livre desse risco.
Aumentando a cooperação internacional, é possível garantir que os marcos do ciberespaço sejam usados para desbaratar células terroristas pelo mundo. Além disso, podemos demonstrar também que talvez esse seja o momento de ampliar o acesso aos produtos latino-americanos nos mercados europeus. Não dá mais para a União Europeia se proteger tanto.


O atentado gerou uma onda mundial de comoção com a mensagem #jesuischarlie dominando as redes sociais. Além disso, cartunistas de todos os continentes fizeram desenhos homenageando as vítimas do atentado. Qual é a grande mensagem que fica desse episódio?

Primeiramente, a questão da defesa das liberdades civis e de imprensa. Mas é preciso defender também a tolerância e a separação entre Estado e religião. É importante despertar a atenção das pessoas para estudar mais a história islâmica, que é tão bonita quanto o cristianismo. É também um momento de chamamento das instituições multilaterais, mas não com as velhas soluções do passado. Há uma hipocrisia internacional bastante grande e é preciso demonstrar que essas questões frequentemente são políticas e a produção de política externa de forma equívoca tem tido desdobramentos muito negativos. Líderes religiosos também precisam ter essa visão clara. Mais uma vez fica evidente a necessidade do Estado funcionar corretamente, proporcionando o que é mais importante, que é segurança. Os atentados na França mostram isso.

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