Combate à criminalidade é com educação e renda, diz procurador

Felipe Motta
fmotta@hojeemdia.com.br
15/09/2017 às 22:31.
Atualizado em 15/11/2021 às 10:35
 (LUCAS PRATES)

(LUCAS PRATES)

Incorporar abordagens sociais e econômicas nas políticas de combate à criminalidade e rever a lógica de atuação somente reativa da polícia. É o que defende Lincoln D’Aquino Filocre, procurador do Estado de Minas Gerais, advogado especialista em direito policial. Lincoln, que acaba de lançar o livro “Direito Policial Moderno: Polícia de Segurança Pública no Direito Administrativo Brasileiro”, conversou com o Hoje em Dia, na tarde da última sexta-feira.

Há, na prática, a aplicação dos princípios do direito administrativo na atividade policial?
Em tese sim, mas nem sempre isso acontece.

Por quê?
Segundo o Datafolha, em 2015, na cidade de São Paulo, 60% dos paulistanos tinham mais medo da polícia do que confiança. É um dado assustador, porque a polícia representa o Estado. É como se nós tivéssemos medo do Estado. A polícia existe para nos proteger. Se também constatarmos que a polícia brasileira, em 2015, matou quatro vezes mais do que a dos Estados Unidos, ou 126 vezes mais que a da Grã-Bretanha, é porque tem alguma coisa errada. Os princípios não têm sido observados a contento. Ao mesmo tempo, o policial brasileiro morre duas vezes mais do que o norte-americano. Mata-se muito e morre-se muito. A polícia brasileira mata, em média, nove pessoas por dia. Falta informação, falta investimentos e uma maior profundidade das questões do direito voltado à atuação policial.

Não se analisa de forma adequada a atuação policial?
Não. A preocupação tem sido muito com o crime. Se você se preocupa com o crime, está pensando em Justiça, Justiça Militar... O que nós precisamos passar a nos preocupar é com a criminalidade. Esse conceito é outro. É o crime em relação ao tempo e ao espaço e não um crime tomado isoladamente. Esse quadro que estamos defendendo é o que traz o direito policial. É uma mudança de perspectiva de segurança pública. Nós cobramos muito a atuação policial para que ela não seja violenta. Ao mesmo tempo, exigimos que a criminalidade acabe com a atuação da PM. É uma coisa esquizofrênica. Você exige a atuação da PM e, ao mesmo tempo, que ela não atue excessivamente. Nesse quadro, o direito policial diz que temos princípios que devem ser seguidos, limitando a atuação policial para que ela não pratique violência contra nós, mas também estabelece até que ponto ela deve ser cobrada. São os princípios da proibição do excesso e o do déficit. Eles esclarecem que existem esses limites de atuação e despertam que algo precisa ser feito em segurança pública para além da polícia.


O que isso envolve?
São ações preventivas. Só a polícia jamais dará fim ao quadro de criminalidade que vivemos no país. Envolve educação, emprego, renda.

É não pensar a segurança descolada das políticas sociais?
Isso não pode acontecer. Existem iniciativas de políticas sociais no Brasil, mas elas também não podem estar dissociadas das políticas econômicas. E para isso não estamos atentos. Não adianta você dar lazer e oficinas educativas a um jovem que vive numa zona de risco se, quando ele fizer 15 ou 16 anos não tiver o recurso para comprar seu tênis e seu boné. É o desejo. A gente precisar ter condições para que ele tenha um trabalho. E que não seja um trabalho qualquer, mas um trabalho digno. Renda digna.

É pensar segurança como algo mais abrangente?
Segurança pública é algo mais amplo, alcança todos esses aspectos. A tal ponto que precisamos rever o papel da polícia, identificando quais as atividades que ela deve desempenhar para além da polícia repressiva. Quando pegamos estudos avançados de fora do país vemos que a polícia pode atuar de maneira interventiva, na comunidade, para proporcionar segurança de forma proativa e não somente repressiva. Ela pode, por exemplo, criar mecanismos de mediação nas localidades com maior risco. Já existem experiências assim que precisam ser aprofundadas e ampliadas. O papel da polícia não é combater criminalidade, é controlar a criminalidade. O combate é com educação e renda. Essa chave muda muito a visão que a gente tem. Ainda que projetos na educação venham crescendo no país, o aspecto econômico, reforço, ainda é pouco considerado. E quando falo não é uma questão específica do nosso Estado, é geral.

Por isso, por exemplo, que o modelo de UPPs no Rio não deu certo?
Quando o modelo foi lançado, muita gente já havia alertado sobre o risco de dar errado. Quando a UPP é montada, a atividade criminosa cai, mas esse movimento não se sustenta. Havia até propostas de UPPs sociais – que não chegaram a ganhar força – mas deixavam de lado a oferta de oportunidades de trabalho. Precisamos criar uma concorrência econômica saudável com o tráfico. São 60 mil mortes ano no Brasil por causas violentas. Metade delas são de jovens entre 15 e 25 anos. Esses meninos são fonte de mão de obra barata para o tráfico. Se o Estado e a sociedade também não estiverem alertas a isso, passaremos décadas para resolver o problema. E é por isso que não é uma solução, em termos de segurança, descriminalizar as drogas. Os jovens acabarão simplesmente migrando para outra atividade ilícita.

Como o senhor aponta, há um corte muito preciso de gênero, raça e faixa social.
Sim. Dentro das 60 mil pessoas que morrem por ano, pouco mais de 70% está entre negros e pardos, entre jovens do sexo masculino. É uma lógica que vem desde a escravidão e vai se perpetuando. Se nós não incorporamos a visão de práticas sociais e econômicas às politicas, vamos continuar com esse quadro.

A unificação das polícias é uma solução a médio prazo?
Estamos colocando o carro muito na frente dos bois com esse debate. O foco do direito policial é tratar a essência da atividade policial. A atuação da PM, é essencialmente ostensiva, se baseia em princípios jurídicos muito específicos. A atuação investigativa, da Polícia Civil, também tem princípios muito específicos. Com a unificação, esses princípios permanecem. Ficamos sujeitos a ter uma única polícia, mas com essas atuações separadas internamente. É claro que há interesses corporativos. Se, depois de estudos, chegarmos a conclusão de que não teremos uma polícia internamente dividida, podemos entrar nesse debate.

Mas essa separação não é muito específica do Brasil?
Nem tanto. Fala-se que o Brasil é uma jabuticaba em relação a essa divisão, mas não é verdade. A polícia chilena, com os carabineros, tem uma atuação muito boa, assim como na Itália. Ambas são militares. O que gente está muito acostumado no Brasil é não aprofundar nas coisas e ficar sujeito aos interesses das corporações, sejam militares ou civis.

Como o senhor vê os debates sobre a redução da maioridade penal, que voltou ao debate no Senado?
Vamos criar mecanismos para prender mais no Brasil? O sistema carcerário é precário. São mais de 600 mil pessoas em presídios no país, sendo cerca de um terço de presos provisórios. Sou favorável a buscarmos outras saídas que não seja reduzir a maioridade. É uma saída fácil, mas não satisfatória. Essa questão é precipitada.

E a questão da ampliação do porte de armas, advogada por alguns deputados federais?
É a mesma lógica. Saída fácil. Saídas dessa natureza não adiantam. Somente agradam o discurso de uma parcela do público.

Qual o papel da União para a reversão desse quadro na segurança?
Fala-se muito que a segurança pública é uma responsabilidade dos Estados. É uma visão distorcida. Na verdade, nosso direito constitucional coloca que a segurança é responsabilidade de todos os entes: municípios, Estado e União. Mas temos colocado tudo nas costas dos Estados. A União tem uma responsabilidade muito grande. De 2001 até agora foram quatro planos nacionais de segurança pública. Nenhum deles funcionou. A Constituição diz que a União é responsável por políticas regionais de desenvolvimento social. Segurança pública não é uma questão social? A União tem que integrar a atuação dos Estados e enfrentar a questão das fronteiras.



 

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por