Frei Betto: ‘É preciso superar o sistema e buscar outros mundos possíveis’

Elemara Duarte - Hoje em Dia
Hoje em Dia - Belo Horizonte
31/08/2015 às 07:14.
Atualizado em 17/11/2021 às 01:34
 (Ricardo Bastos)

(Ricardo Bastos)

Frei Betto tem acesso livre à “ala de convidados especiais do Papa”, mas também, para o afago na cabeça do menino de rua que lhe pede atenção. Assim, seja no refúgio do amigo Fidel Castro ou na simplicidade do quarto de 20 metros quadrados onde vive em um convento paulista, é que ele continua, como poucos, a ser testemunha e pensador assíduo da história mundial. Por isso a inspiração dele para escrever não se esgota – habilidade que quer praticar “até o resto” dos seus dias, como demonstra a seguir.
O senhor acaba de completar 71 anos (dia 25 de agosto). O que a maturidade lhe trouxe de melhor e pior?
A maturidade me trouxe um pouco mais de sabedoria. Ou seja, hoje eu dou muito menos importância para aquilo que não tem importância.
O que “não tem importância”?
O varejo. Eu invisto mais no atacado: a minha obra, os meus projetos profissionais, pastorais.
E o pior?
O de pior é esse paradoxo do humano – quanto mais a gente adquire experiência e sabedoria, mais a gente envelhece.
O que vem depois da morte?
Vem algo como um oceano de amor, mas que eu não sei definir. Mas como eu aderi à palavra de Jesus e creio que ele não tinha razões para mentir, eu acredito nisso. Mas não é por esperar isso que eu faço o que faço. Faço o que faço porque é importante a gente fazer o bem, lutar pela justiça, contra a desigualdade social e sobretudo buscar uma alternativa ao sistema capitalista que é intrinsecamente nocivo, como o Papa Francisco tem acentuado.
Esteve com o Papa muitas vezes?
Estive com ele no dia 9 de abril de 2014. Foi uma conversa muito boa, em Roma. Tivemos um diálogo breve. Ele conhecia a minha obra. Eu pedi a ele que reabilitasse dois confrades meus, que foram censurados pela Igreja. Ele disse: “Reze por isso”.
O senhor esperava ver um latino-americano neste posto?
Eu achava que Deus já tinha me contemplado pelo grande presente de conviver no tempo em que a Igreja foi dirigida por João 23, que convocou o Concílio Vaticano II (conferências feitas em 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo).
Hoje, em muitas letras de músicas prega-se o valor humano focado no consumo. Como o senhor vê isso?
Este é o grande conflito entre a família, a Igreja, a escola e a grande mídia. O sistema quer consumistas. Você pode imaginar quantos milhões de jovens pobres vivem uma frustração tremenda porque não possuem a mercadoria que imprimiria valor a eles? Ou seja, essa é a brutal desumanidade.
E há saída para isso?
Somente fora do sistema capitalista. A longo prazo é esperar que este sistema, como tantos outros que já passaram e foram superados, também o seja.
O senhor acha que a agressividade no mundo mudou o estilo?
Ela é mais acirrada por causa da ideologia em que vivemos, que é a ideologia da “competitividade”, e não da “solidariedade”: se eu não te passar para trás, se eu não pisar em você, eu não subo, eu não consigo chegar lá. E isso é realmente um fator preocupante. Por isso que digo: não basta corrigir os efeitos do sistema, é preciso superar o sistema e buscar outros mundos possíveis.
Como o senhor vê a retomada do diálogo entre Estados Unidos e Cuba?
É uma grande vitória para eles o fato de o presidente Obama, no dia 17 de dezembro de 2014, ter vindo a público dizer que o bloqueio não funcionou. Ou seja, apesar de toda pressão, os cubanos resistiram. Cuba tem erros e limites? Muitos. Mas tem algo que nenhum outro país da América Latina pode se orgulhar de ter: segurança para toda a população de quase 12 milhões de habitantes dos três direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde e educação.
Já foi lá quantas vezes?
Mais de 40.
É muito amigo do Fidel Castro?
Não sou eu que sou amigo do Fidel, o Fidel que é meu amigo. Porque muitas pessoas gostariam de privar desta amizade que ele tem por mim. E é fato que a cada vez que vou a Cuba, ele me convida para ir até a casa dele. Neste ano, estive lá em janeiro e abril e, nas duas vezes, ele me convidou a ir à casa dele.
Ligam um para o outro, trocam e-mails?
Não temos esta relação à distância. Eu apenas tenho um canal, por meio do qual eu aviso cada vez que vou à Cuba...
“Tô chegando...”
Isso, tô chegando... E ele sabe onde eu estou e recebe a minha programação.
Como o chama?
Eu o chamo de “Comandante” ou de “Fidel”.
E ele chama o senhor de “Frei”?
Ele me chama de “Betto”. É como os meus amigos me chamam.
Ele tem algum tipo de preocupação com o Brasil?
Tem muita preocupação. Ele é ligadíssimo na conjuntura mundial. Ele sabe que o Brasil é fundamental nos destinos da América Latina.
Como ele é? Bem humorado, rígido, falante...
Bem humorado, é muito falante. Mas a cabeça é exatamente a mesma, ágil, que eu conheci em 1980. E ele tem a cabeça matemática. De perguntar qual é a população do Brasil, quantos mortos tem no trânsito por ano, e isso quer dizer que por cada grupo de cem mil são tantos e tantos por cento...
São quantos anos de vida religiosa?
Entrei nos Dominicanos no fim de janeiro de 1965. Eu não sou padre, sou só religioso.
O senhor só tinha 20 anos. Que menino era aquele?
Era um militante. Vinha desde os 13 anos na militância estudantil. Já tinha percorrido o Brasil inteiro duas vezes, através da militância.
Já tinha um currículo, Frei?
Já tinha um currículo... Já tinha sido preso. A minha primeira prisão foi em junho de 1964, por 15 dias, na Marinha, no Rio.
Como o senhor vê os “padres cantores”?
Eu tenho muito respeito por esses padres, embora eu carregue uma preocupação. Essa exposição em excesso faz com que eles corram o risco de trocar a “pessoa” pela “persona”.
O que é isso?
É você deixar de ser o Beto, o João, o Pedro e passar a ser o “padre cantor”, o padre famoso, o padre midiático. Explico bem: eu posso parar numa esquina com amigos e tomar um chopp. Eles não. Eu lamento. E fico pensando como é que eles lidam com a afetividade quando sofrem tamanha exposição.
O que faz o senhor sorrir?
Me faz sorrir as boas coisas da vida como um encontro com amigos, com familiares. Poder estar relaxado na minha comunidade.
E o que lhe faz chorar?
A dor da miséria.
Qual foi a última cena diante da qual chegou a tirar o lenço do bolso e sentiu a garganta travar?
Estava no sinal vermelho, em São Paulo, e um garoto chegou. Sempre carrego balas comigo, justamente para não dar dinheiro. Ele se aproximou: “Moço, me dá um dinheiro?”. Eu falei que não tinha. Eu estava com um último pacote de drops, dei e passei a mão na cabeça dele. Ele se afastou, foi para outro carro e, então, se aproximou um outro garoto, que viu que eu tinha dado alguma coisa. Falei que não tinha dinheiro e que a última bala, eu tinha dado para o amigo dele. “Vê lá com ele”, eu disse. E ele: “Não, moço. Eu não quero bala, não quero dinheiro. Eu quero que você passe a mão na minha cabeça”. Aí, realmente, quando eu lembro já tenho vontade de chorar de novo.

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