Programa Criança Feliz é similar a outros que sofrem com falta de recursos

Filipe Motta
fmotta@hojeemdia.com.br
14/10/2016 às 23:20.
Atualizado em 15/11/2021 às 21:14

 Ao mesmo tempo em que o governo Temer anuncia os primeiros passos do Programa Criança Feliz, uma série de políticas públicas federais e também com foco na primeira infância derretem em suas implementações.

Lançado com alarde pelo presidente e com holofotes virados para a primeira dama, Marcela Temer, o Criança Feliz tem orçamento de R$ 300 milhões previstos para 2017. Enquanto isso, a rubrica de apoio à implantação do Rede Cegonha, por exemplo, que busca melhorar o atendimento em pré-natal, parto e primeiros anos de vida das crianças, teve somente R$ 5,9 milhões dos R$ 172 milhões de investimentos previstos para 2016, pagos até o começo de outubro.

Em situação pior, o Projeto de Implementação de Escolas para Educação Infantil não teve os R$ 402,5 milhões de recursos previstos para este ano, se limitando ao pagamento de R$ 80,72 mil. O projeto integrava uma das grandes bandeiras do governo Dilma, o Brasil Carinhoso, que reunia ações nas áreas de educação infantil, saúde e assistência social para crianças de 0 a 6 anos.

Não é de hoje
No ano passado, o problema de execução orçamentária tinha sido semelhante, com pagamento de R$ 21,3 milhões dos R$ 172,4 milhões previstos na implantação da Rede Cegonha e R$ 10,11 milhões pagos dos R$ 3,7 bilhões previstos para escolas infantis. Os dados são das planilhas de execução da lei orçamentária anual, disponíveis no site do Senado.

Abrigado no Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), o governo federal anunciou o Criança Feliz com a proposta de auxiliar mães no pré-natal, nascimento e desenvolvimento infantil até os três anos, dando foco a ações como visitas domiciliares.

Especialistas, no entanto, criticam a criação do novo programa diante das outras políticas públicas já desenhadas em diversas pastas. São os casos do já citado Rede Cegonha, vinculado ao Ministério da Saúde, e do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família, que prevê visitas de psicólogos e assistentes sociais a famílias em situação vulnerável e, assim como o Criança Feliz, está ligado ao MDSA.

“O Criança Feliz não precisava ser criado, porque já existe. Já há políticas desenhadas e estruturadas para esse público de 0 a 6 anos. Só não há recursos para uma cobertura eficiente. Se a gente tira o recurso de uma política que já está desenhada e leva para uma outra, paralela, está retrocedendo”, afirma a mestre em psicologia social e colaboradora do Conselho Regional de Psicologia, Deborah Akerman.

A pediatra epidemiologista Sônia Lansky também defende que o governo deveria ter priorizado a continuidade de ações já existentes. Ela, que é colaboradora da pós-graduação da Faculdade de Medicina da UFMG, pontua que no SUS já existem estratégias de acompanhamento das mulheres na gestação, com a Rede Cegonha, e de crianças, por meio do Programa Saúde da Família.

O problema, avalia, é que os recursos são escassos, apesar de o desenho da política já estar estruturado por profissionais e especialistas.


Especialista teme precarização no atendimento às famílias

Para a colaboradora do Conselho Regional de Psicologia, Deborah Akerman, dada a pouca força orçamentária para o ano que vem, o Criança Feliz não avançará para além de um programa piloto, de forma experimental. “Não precisamos de programas-piloto, mas de programas universais”, afirma.
Ela ainda teme que haja uma precarização do atendimento às famílias, com a entrada de profissionais sem a formação técnica adequada para lidar com o que vão encarar. “Equipes de Saúde da Família e dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) que hoje fazem atendimento possuem formação nas áreas de saúde, assistência social e psicologia. Quem vai ser o profissional do Criança Feliz?”, questiona.

Alinhamento
O educador Vital Didonet, assessor legislativo da Rede Nacional Primeira Infância, que reúne mais de 200 organizações da área, é menos pessimista. Ele pontua que o governo federal precisa criar um alinhamento entre os agentes de saúde da família e os agentes que irão fazer o trabalho do Criança Feliz para que não haja sobreposição de ações e resistência das famílias a uma “super exposição” de pessoas estranhas a elas. E vê benefícios.

“O Rede Cegonha tem um papel muito importante na redução da mortalidade materna, mas tem um foco maior na mãe. As equipes do Cras procuram atender famílias vulneráveis, mas não é tão sistemático, acontece mais em situações de risco. O Criança Feliz tem uma coisa interessante que é ter a visita semanal de uma hora de um agente, que vai acompanhar a família”, avalia. Ele, no entanto, pondera: “os programas não são conflitantes. Mas os ministérios precisam se articular para não entrarem em rota de colisão”.

Outro lado
O Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário afirmou que o Criança Feliz terá um comitê gestor que contará com os ministérios da Saúde, Educação, Cultura e Justiça.

“Não haverá superposição e sim integração. Um dos problemas atuais das políticas voltadas para a primeira infância é exatamente a fragmentação”, diz a nota. Segunda a Pasta, nenhum dos outros programas existentes será extinto. “Eles apenas deverão se adaptar para focar e priorizar a primeira infância”, afirma o órgão.


SAIBA MAIS

Tanto a epidemiologista Sônia Lansky quanto a psicóloga social Deborah Akerman veem como negativo o que chamam de “primeiro-damismo” do Criança Feliz. O problema, enfatizam, não é a pessoa da primeira dama, mas sim uma lógica de intervenção na área de assistência social que vende uma imagem que o governo está fazendo “caridade” e não executando uma política pública para crianças baseada em direitos previstos na Constituição de 1988, nas leis orgânicas do SUS e da Assistência Social e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
“Não é questão de ser bonzinho. Não é caridade. É uma questão de direito. É esse caminho que deveríamos estar valorizando”, pontua Sônia Lansky. Ela e Deborah lembram que muitas das políticas que estavam em execução demoraram anos para serem gestadas e que precisam de tempo para sedimentação, além de controle social. “A Rede Cegonha trabalhava com proposta de mudança de cultura do acompanhamento da gestante, valorizando a mulher no trabalho de parto, a família, o fortalecimento de vínculos com a presença do pai”, exemplifica Sônia.
Na próxima quinta-feira, 20, trinta entidades mineiras da área social lançarão um manifesto contra a forma como Programa Criança Feliz foi estruturado.

  

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