(Wallace Graciano)
TERESÓPOLIS – Quase 15 quilômetros separam os sorrisos de Neymar e Marquinho em Teresópolis, na região Serrana do Rio de Janeiro. O astro da Seleção, de 22 anos, treina diariamente na luxuosa Granja Comary, se preparando para liderar o Brasil na esperada Copa do Mundo. Enquanto isso, o olhar confiante de Marcos Vinícius Ferreira, de 14 anos, fã assumido do camisa 10 canarinho, ainda se depara com o amontoado de pedras e entulho que insiste em estragar a bucólica paisagem do bairro de Campo Grande.
“Só queria o autógrafo de Neymar”, implora o garoto. Talvez, o craque do Barcelona nem se recorde de uma tragédia que assolou a sua “casa provisória” em janeiro de 2011. As fortes chuvas causaram enchentes, deslizamentos e desabamentos na cidade. Os números oficiais apontam quase 400 mortes no local, mas centenas de vítimas continuariam desaparecidas.
O cenário de Campo Grande ainda é de destruição. Em muitos momentos, lembra uma “localidade fantasma”, com pequenas edificações e casas abandonadas. Poucas pessoas circulam pelas ladeiras.
Marquinho acabou se tornando o símbolo da luta pela vida em meio ao desastre de Teresópolis. A água o arrastou por quatro quilômetros morro abaixo.
As cicatrizes espalhadas pelo corpo mostram que ele foi atingido por pedras, troncos e blocos de madeira, pedaços de ferro. Após três anos, o estudante ainda mora lá, brincando pelas ruas do bairro onde nasceu. “Dois meses depois, retornei do hospital. Pedi a meu pai para não sairmos dali. Chorei com ele e disse: ‘Vamos lutar por isso aqui’”, recorda-se.
Sentado ao lado do pai, Cartolino Ferreira, de 49 anos, conhecido como Totonho, Marquinho não tem medo de descrever sua história. “Falei para ele encarar o que aconteceu e não deixar isso cair no esquecimento”, comenta Totonho, mestre de obras que ficou 16 horas soterrado e hoje aluga uma nova casa, a poucos metros da antiga.
Horror
Na madrugada de 12 de janeiro, a enxurrada atingiu em cheio a casa de Marquinho. “Estava assistindo TV com minha mãe, Ana Cláudia, no quarto. De repente, só água. Escutei ela pedir socorro e mais nada. Saí batendo cabeça, corpo, tudo. Parecia que estava sendo partido no meio. Levantava a cabeça, tentando respirar, mas afundava de novo”, conta.
A mãe morreu, assim como outros 27 familiares. Marquinho foi resgatado horas depois, clamando por ajuda. “Sinto falta dos meus amigos. Perdi quase todos. Sem falar da minha mãe”, se recorda, único minuto em que fecha a cara.
Porém, o garoto não perdeu a alegria e a fama de brincalhão. “Às vezes, ele tem uma recaída, o que é normal. Foi um trauma muito grande. Converso com ele, lhe dou apoio, e logo meu filho melhora. Quero que o Marcos Vinícius sempre mantenha seu espírito de luta, assim como o meu”, diz o pai Totonho.
O jeito moleque de Neymar nos treinos da Seleção se assemelha ao de Marquinho. Se não fosse pelo atacante do Barcelona, o menino nem notaria a presença do time de Luiz Felipe Scolari em sua cidade. “Não ligo muito. Gosto somente do Neymar”, comenta, antes de uma nova risada.
Parreira agradece hospitalidade
O coordenador técnico da Seleção Brasileira, Carlos Alberto Parreira, fez questão de relembrar a tragédia de Teresópolis de 2011 na última segunda-feira, durante entrevista coletiva.
Quando os 23 jogadores convocados por Luiz Felipe Scolari se apresentaram na cidade da região Serrana do Rio, o comandante do tetra agradeceu a receptividade dos moradores e lembrou o quanto é importante estar no local.
“Para nós, da comissão técnica, é um prazer muito grande voltar para a Granja, nossa casa, ainda mais do jeito que ela está. É um motivo de orgulho o futebol brasileiro ter um centro de treinamento como esse. Dedico tudo isso a Teresópolis, que sofreu com as enchentes há três anos. Queremos dedicar essa estada ao povo da cidade”, afirmou Parreira.
Uma cidade com medo da chuva
Os trovões pareceram saudar o desembarque da Seleção Brasileira em Teresópolis nesta semana. A chuva não deu trégua. Rosane Vítor, de 51 anos, olha para o céu angustiada. A comerciante comenta que o trauma com relação à tragédia de 2011 será eterno. Ela perdeu duas netas, de 4 e 7 anos, no bairro Campo Grande.
“O pessoal aqui fica apavorado quando começa a pingar. Até pouco tempo, eu não podia ver uma nuvem preta. Eu entrava em pânico”, lembra Rosane, que viu desabar, além da residência, seus dois estabelecimentos comerciais. Depois de receber uma indenização do Estado, ela decidiu se mudar. Mas ainda faz questão de trabalhar na região. “Todos amam aqui”, diz.
Na madrugada de 12 de janeiro, 12 trombas d’água atingiram a cidade, sendo oito em Campo Grande. Rosane não se esquece dos detalhes da trágica noite.
“Foi surreal, entrei em desespero. Achei que estivesse acabando o mundo. Tomei calmantes. Era um barulho ensurdecedor, com as pedras rolando. Quando o muro da minha casa quebrou, pensei que ia cair tudo. Escutava os pedidos de socorro, os gritos. Tudo isso na escuridão, com os relâmpagos”, relembra.
Emoção
Ao seu lado, Márcio Lopes, de 34 anos, acompanhava o depoimento da amiga. Os olhos do madeireiro se enchiam de lágrima. Ele ajudou as equipes de resgate no local com uma motosserra.
“Não sei quantas pessoas salvei debaixo da lama. Só não consegui achar meu pai e outros 18 familiares com vida, incluindo meu tio e minhas priminhas. Pelo menos minha mãe ficou”, afirma.
Márcio precisou sair de Campo Grande. No entanto, um dia espera voltar a viver onde cresceu. “Gosto demais daqui. Choro muito desde então. Não tem como esquecer aquelas cenas tristes. Entrei em depressão. Minha família, de vez em quando, acha que estou ficando maluco. É muita dor”, lamenta.
Para Márcio e Rosane, a presença da Seleção em Teresópolis é um mero detalhe. “Só penso em reconstruir minha vida. Isso é o que interessa. Sei que nunca vou me recuperar daquilo. Mas preciso seguir em frente”, conclui o madeireiro.
Entrevista
"Tem gente aqui em Teresópolis que não sabe de nada", diz vítima da tragédia de 2011
Cartolino Ferreira, de 49 anos, ainda carrega severas marcas daquela tragédia. Quando a reportagem chegou a Campo Grande, o pedreiro Totonho, como é conhecido na região, se mostrou relutante ao falar sobre o ocorrido em janeiro de 2011. Ele afirmava que “o que passou, passou”. Porém, pouco depois, sentou à beira da rua e contou sua história. A revolta com o desamparo ainda o machuca.
Como foi aquela noite?
De repente, você vê aquela chuva forte caindo e não tem para onde sair. Quando vi, a água já estava entrando na minha casa toda. Fiquei preso. A força da água era grande demais e arrebentou uma das paredes. E aí fui arrastado por quase um quilômetro, enquanto pensava na minha família. Fiquei 16 horas soterrado, até que fui salvo e encaminhado para o hospital. Lá cheguei a ver o Marquinhos, mas ele teve de ser transferido pelos ferimentos, já que foi atingido por pedras e ferro. Está cheio de marcas até hoje. Eu também. Tive cinco costelas quebradas que ainda doem, dependendo do movimento.
Após disso tudo, como foi retomar a vida?
Difícil. Você vê. Fiquei quase dois meses internado. Aí que fui rever meu filho. Quando você volta, vê que aquilo tudo que construiu não é mais seu. Perdi 27 pessoas. Minha esposa, sobrinho, filho de sobrinhos, amigos, companheiros mesmo aqui do bairro. Mesmo com toda a chuva, ficou esse carro aí (aponta para o automóvel estacionado ao lado). Vale R$ 5 mil, R$ 10 mil. Sei lá quanto. Não queria ele. Queria qualquer um da minha família ou amigos daqui. Um bairro que tinha quase três mil pessoas, ficaram poucas (nesde momento ele começa a contar nos dedos, apontando para as casas). Alguns estão desaparecidos até hoje. Desaparecido não é morto, né? Outros mudaram daqui. Você começa a entrar em depressão, tem que ser forte. Retomar não é fácil.
Os governos ajudaram as vítimas?
Rapaz, se falar, ninguém acredita. Mas tem gente aqui de Teresópolis que nem sabe o que ocorreu com a gente. Nesse processo, documento ali, aqui, me chegou um funcionário do governo e perguntou: ‘o que é que realmente aconteceu com você?’. Perdi o controle. Respondi: ‘se você não sabe, o que está fazendo aqui?’. Houve descaso de muita gente. Não é falar somente de um ou outro. O governo veio, recuperou algumas partes, mas, você vê aí. Até hoje mexe no bairro e não apresenta uma definição. Derrubam o que está pela frente. Com minha casa foi assim. Briguei muito aqui.
Apesar desse desamparo dos governos, você recebeu ajuda de alguma pessoa ou outra entidade nesse meio tempo?
Tem muitas pessoas que ajudaram a mim e aos meus amigos. Para você ver, desde lá, não comprei uma camisa para o Marquinho. Ganhamos muitas roupas e tenho que agradecer muito a essas pessoas. Tem um senhor do Paraná que nos ajudou durante um ano. Ele sempre um dinheiro para a conta da minha irmã. Ganhei muitas roupas também. Devo muito a ele. Porém, pouco depois, teve um caso igual lá (no Paraná). Ele havia me ligado, agradeci a tudo que ele fez por mim, porém afirmei que tinha me estabilizado, já estava trabalhando, conseguindo pagar o aluguel. Teve uma senhora de Limeira que ajudou muito a mim e ao Marquinhos depois. Ela mandava roupa, cartas para ele. Chegou a mandar também uma foto da família dela. E olha que ela passa por dificuldades. Tem um parente doente. Falei ‘minha senhora, você já me ajudou muito, mas tem alguém que precisa mais aí’, ela me disse: ‘a minha ajuda vem de Deus’. Sabe, não queria nada de ninguém. Quero apenas viver do meu esforço, mas sou muito grato ao que fizeram por mim. Me ajudaram a me levantar. Queria que eles vissem o bem que fizeram ao meu filho.
Que bem é esse?
O Marquinhos teve uma volta à escola muito complicada. Eram muitas marcas. O menino custou a se recuperar. Mas ele e Deus foram minha força. Pouco depois daquilo tudo, lembro de um dia que estávamos voltando para cá e vendo toda aquela destruição. Ele virou para mim e disse: ‘Pai, vamos lutar por isso aqui’. Às vezes, ele tem uma recaída, o que é normal. Foi um trauma muito grande. Converso com ele, lhe dou apoio, e logo meu filho melhora. Quero que o Marcos Vinícius sempre mantenha seu espírito de luta, assim como o meu. E ele vem conseguindo isso.
Ver toda a festa montada pela Copa do Mundo chega a incomodar o senhor?
Para ser sincero, não. É uma festa. Eu entendo. Trabalhei durante um tempo ali no condomínio Comary (onde fica a Granja Comary, base da Seleção Brasileira). Porém, o que imagino é que a festa tem que atender ao povo. Não atende. Foi dinheiro gasto à toa. Mas também não vou ficar aqui lamentando por ela. Eles que façam ela por lá, que vou tocar minha vida aqui.