Carta de Montes Claros aos povos do cerrado

Jornal O Norte
19/09/2005 às 09:47.
Atualizado em 15/11/2021 às 08:51

“Os cerrados brasileiros se constituem numa fisionomia de savana única, portadora de 5% a biodiversidade do planeta. Essa diversidade é condicionada por sua posição central no continente sul americano colocando-o em contato com os principais biomas brasileiros e seus domínios- a floresta Amazônica, a mata Atlântica, a caatinga, o pantanal, as matas de cocais do Maranhão e Piauí. Se considerarmos todas essas áreas de transição e ainda as ilhas de cerrado na Amazônia (AP, RR e PA), chegamos a um total de 315 milhões de pessoas. Há que considerar, ainda, que o cerrado é o grande reservatório hídrico onde nascem e se alimentam as principais bacias hidrográficas sul americanas. E são as suas longas e planas chapadas as áreas de recarga que conformam esse reservatório.

Ao longo de 12.000 anos de ocupação humana, essa diversidade ecológica propiciou a diversidade de modos de vida e de estratégias de uso dos recursos e de convivência com a natureza. Essa sociodiversidade está representada em nós, povos dos cerrados, caracterizados pelo agro-extrativismo: populações indígenas, quilombolas, geraizeiros, veredeiros, quebradeiras de coco, vazanteiros, chapadeiros, varjeiros, retireiros, pantaneiros e diversas outras identidades locais.

Queremos afirmar, que por tudo isto, os cerrados são ricos e não podem estar subordinados á simples lógica mercantil contida na noção de agronegócio. Para nós, o valor dos Cerrados é antes de tudo o valor da vida de todos os seres e elementos que o constituem, que nele habitam e que dele dependem: homens, mulheres, os bichos, as plantas, a terra, as águas, os minerais.

Depois da destruição da Mata Atlântica, no Brasil, é sobre os cerrados que pesa o papel da continuidade da produção de commodities baratas para alimentar a desigualdade do sistema mundial de produção de mercadorias e capitais.

Hoje, nossas populações se encontram literalmente encurraladas pela apropriação das chapadas pelos latifúndios produtivas do agronegócio que não só concentram poder e riqueza como desestabilizam os ciclos e fluxos ecológicos que eram sustentados pela biodiversidade e pela função de caixa d exercida pelas chapadas. Como unidade ecológica fundamental para a reprodução dos modos de vida e produção das população dos Cerrados, as chapadas eram e são áreas de uso comum, ricas em recursos do extrativismo, cujo manejo tradicional propiciou a sua conservação e uso sustentável durante séculos.

Estamos, pois, diante do confronto de dois modelos de uso dos recursos naturais nos Cerrados: 1- o dos Povos dos Cerrados, que maneja os recursos naturais conservando a biodiversidade e a água, fundamentais não só para nós como para toda a humanidade e o planeta, que sabe que a sobrevivência de todos e de cada um depende da conservação da fertilidade natural da terra e; 2- o do Agronegócio, que beneficia poucos, sendo que a maioria sequer habita a região e que, exatamente por isso, não respeita os lugares, sua natureza e sua cultura e coloca em risco todo esse patrimônio natural e cultural.

Enquanto atores sociais que fazem dos Cerrados seu lugar de viver e existir, nos sentimos responsáveis e com autoridade para dizer não à grilagem de terras, à etnobiopirataria, à contaminação de nossa gente e da água de todos, ao processo de modernização homogeneizante, à erosão dos solos e ao assoreamento dos rios e reivindicamos um amplo processo de diálogo entre sociedade e Estado onde, desde já, assumimos nosso compromisso de contribuir para garantir, ao conjunto da sociedade brasileira, a segurança alimentar, a conservação da biodiversidade, para a fertilidade dos solos e , como verdadeiros guardiões da água, contribuindo assim para as sustentabilidade social, cultural e ambiental.

É no sentido de democratização das políticas e reconhecimento das especificidades dos modos de vida diferenciados, mesmo entre nós, que defendemos uma moratória que suspenda a abertura de novas áreas nos cerrados e um modelo de desenvolvimento não subordinado a interesses externos e de grupos oligárquicos. Que este modelo incorpore e se alicerce em uma noção de sustentabilidade, enraizada nas nossas territorialidades, fortalecedora e potencializadora dos modos de vida e de produção daqueles que não conseguem existir sem os Cerrados e são os verdadeiros guardiões de toda sua riqueza ecológica e cultural.”

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