(Joao Mendes/Divulgação)
O termo “caixa preta” é bastante conhecido por se referir às informações secretas, das quais poucos tem acesso. No universo da fotografia, a expressão é central em uma consagrada obra do filósofo Vilém Flusser, onde as questões técnicas do fotografar de alguma forma se coadunam com a necessidade de desvendar os mecanismos de poder e a sujeição a eles.
Nesta direção, a exposição “Retratistas do Morro” se conecta à estas duas possibilidades. Primeiro, por oferecer um amplo panorama imagético do Aglomerado da Serra, região de Belo Horizonte, pouco conhecida e contemplada. Segundo, por dar “uma visualidade à uma cultura que não estava nos espaços hegemônicos de difusão, conectando a trajetória destes sujeitos com a historia da cidade”, como diz Guilherme Cunha, artista e idealizador do projeto.
“Retratistas do Morro” está em cartaz no Memorial Minas Vale até o final de dezembro e passa agora para a fase de arrecadação de fundos via financiamento coletivo voltada para publicação de um livro com este acervo fotográfico. A campanha segue até o dia 19 de dezembro no endereço www.catarse.me/retratistasdomorro.
TESOUROS
O projeto na verdade nasceu no entorno de outra ideia, o “Memórias da Vila”. “De 2011 a 2016, íamos ao Aglomerado capturar histórias, como forma de contribuir para a memória oral dos moradores. Durante a produção, uma senhora chamada Ana Martins disse que queria mostrar alguns de seus tesouros. Ela voltou com um saco plástico, e quando abriu ele, tinha um universo inteiro ali. Cerca de 60 monóculos (forma de registro fotográfico) que capturavam o início das ocupações populares ali. Encontrar essas fotos foi abrir um fenda na história”, diz Cunha.
A partir deste encontro, outros moradores foram apresentando acervos de imagens para a equipe. Quando um serralheiro chamado Adão mostrou seu arquivo, avisando que recém tinha jogado fora uma série de negativos, surgiu a ideia de recolher o máximo daquele material possível. “Desde 2015 estamos na luta de restauração técnica das imagens, tentando fazer essa leitura crítica sobre a historiografia das imagens brasileiras, de fatos que não estão incluídos nos autos oficiais da história”.
Nas imagens, uma coleção extensa de cotidianidades que revelam a vida social intensa dos moradores do Aglomerado. “Registro de batismo, de aniversários, formaturas, da construção dos barracos dos moradores”, enumera. </CW>
Aí está o gesto político do projeto: dar a ver, através do registro fotográfico, narrativas periféricas, que foram invisibilizadas. “Trata-se de uma violência simbólica”, diz Cunha. “Uma lógica de exclusão mesmo, em que aparece a força do poder sobre determinados espaços e sua potencia em subtrair a imagem do outro, da diferença”, teoriza.
Em outubro, “Retratistas do Morro” recebeu a chancela do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) por meio do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, por sua importância para a preservação do patrimônio cultural nacional. Tal reconhecimento aponta uma mudança fundamental na forma de conceber e reconhecer valores culturais. “Trata-se de uma sinalização positiva”, acredita Cunha. “Quando ganhamos este prêmio, vemos que também está em curso uma visão que tenta ampliar o entendimento sobre as múltiplas narrativas da historia. As noções de realidade são construídas por muitas vozes, que precisam estar representadas também, especialmente diante de uma sociedade pouco solidária e sectarista. Resíduos, aliás, da lógica classista que vivemos hoje”, acredita.