A privacidade devassada de ‘Trustália’

Em entrevista exclusiva, autor fala sobre criação e obra. Leia na íntegra ao fim da matéria

César Augusto Alves
cpaulo@hojeemdia.com.br
08/04/2016 às 18:01.
Atualizado em 16/11/2021 às 02:51
 (Divulgação/Bethania Betcher)

(Divulgação/Bethania Betcher)

Em tempos de cólera, por que não repensarmos a sociedade ao enfrentar toda sua hipocrisia moral? Talvez seja essa a pretensão de “Trustália: uma quase distopia”, novo lançamento do autor Magno Mello. Na ficção, um povoado é alterado após um fenômeno paranormal – que não dá a tônica da obra, vale ressaltar – provocar uma reação que seria, no mínimo, curiosa de assistir na realidade: a capacidade de ouvir pensamentos.

Apesar de parecer uma ideia simples, o autor percorre um sinuoso caminho de desconstrução moral, e faz incursões perigosas em suas provocações. Através de uma escrita nada rebuscada, consegue confrontar o leitor: e se você tivesse esse poder de ouvir pensamentos? Ou as pessoas do seu convívio? A partir daí, uma teia que envolve violência, amores e questionamentos filosóficos se constrói e conduz a narrativa.

Privacidade ameaçada

Para o autor, a privacidade é um conceito fadado à origem. Ou seja, à extinção. Ao lembrar que a vida privada como conhecemos tem apenas seis séculos de idade, chama atenção para o caminho que tomamos com a exposição diária que nós mesmos buscamos.

Aos poucos, reflete, perdemos a capacidade de sustentar verdades intactas. É o que acontece com seus personagens, e faz com que confrontemos em nós verdades hipócritas.

Absolutamente contemporâneo, outra crítica que o livro faz é ao hábito de falarmos. Banal? Nem um pouco. Acontece que falamos muito. Se somos tagarelas e jogamos palavras ao vento, garante Magno, nossa hipocrisia também provém desse fato.

Ao usarmos a retórica exclusivamente como recurso do convencimento, abandonamos a busca pela verdade. “Palavras são códigos que permitem todo tipo de floreios. Mesmo assim, construímos nosso mundo com essa poderosa e perigosa ferramenta”, disse em entrevista.

Inspiração

Se também lhe pareceu algo à la Saramago, o fato de algo acontecer subitamente e mudar o comportamento de uma população fictícia é apenas uma impressão. Magno garante que não teve nenhuma inspiração direta. “A coisa brotou, veio como veio. Tendo a acreditar que ‘se não brotar, não é arte’”, ressalta o autor.

Brotar, no caso, é fazer surgir da sociedade em que vive, e analisa, sua obra. Basicamente, “Trustália” questiona valores e provoca o leitor – o que se torna imprescindível nos dias à flor da pele em que vivem os brasileiros.

“Tentei passar a ideia de que nossos pragmatismos são ficções mal elaboradas, que seguimos por caminhos que não queremos, fazemos o que não queremos, mesmo que acreditemos no contrário”, afirma o autor, que garante não ter usado de recursos “morais” para atingir seu discurso.

Lançamento

Distribuído pela Chiado Editora no Brasil e em Portugal, “Trustália: uma quase distopia”, é o primeiro livro de Magno Mello. O autor lança a obra amanhã na Livraria Leitura do Pátio Savassi.

Entrevista

Em entrevista exclusiva ao Hoje em Dia, o estreante da literatura Magno Mello conversou sobre inspiração, questionamentos sociais e os caminhos pelos quais passam sua obra. Confira na íntegra:

 O selo da editora é de Portugal. O livro foi lançado por lá também? Ou só impresso lá e distribuído aqui?

O livro está sendo lançado nos dois países, nos formatos físico e digital.

Trustália se auto-define uma "quase distopia". Você desconstrói utopias? Despragmatiza o homem através da ficção que criou?

É assim que o mundo vai se construindo.

Por meio de técnicas retóricas, portanto, são criadas teorias, alegorias, regras, valores e representações que parecem racionais, lógicas e convincentes. Mas uma verdade, para a qual não gostamos muito de olhar, é que o mundo, na maioria das vezes, foi construido por blefes bem sucedidos e, geralmente, mal intencionados.

Acho que no livro tentei passar a ideia de que nossos pragmatismos são ficções mal elaboradas, que muitas vezes seguimos por caminhos que não queremos seguir, fazemos o que não queremos fazer, pensamos como não queremos pensar, mesmo que acreditemos profundamente no contrário. Mas creio não ter feito isso por meio de discursos morais. Deixei que os atos de cada personagem falassem por si, e espero que cada leitor leia, assimile e valore como quiser.

Você cria um cotidiano para criticar a hipocrisia cotidiana. No que consiste esta hipocrisia? Qual sua principal crítica?

grande conflito psíquico das personagens é ter sua privacidade devassada. Esse é um tema delicado. Muitos abominam a crescente falta de privacidade e somos nós mesmos que a estamos alimentando. Tratamos a privacidade como se fosse um direito inviolável, algo que sempre existiu no mundo. Isso também é outro mito que cairá por terra. A privacidade, como a entendemos, tem menos de seicentos anos. Não é natural do ser humano. Vivemos por séculos e séculos em tribos, em casas sem separações por paredes, em campanhas de migrações e de guerras, que não separavam os lugares de comer, de cortar o cabelo ou de fazer sexo. Mesmo o ato de defecar não era escondido. E, sim, sobrevivemos a isso, sem sequer imaginar que não possuíamos essa invenção cultural chamada privacidade. Quanto ao seu excesso, não é exagero dizer que nos tornou excessivamente individualistas, indiferentes, mesquinhos e solitários. Portanto, pode não ser algo tão bom quanto parece. Acho que de alguma forma estamos tentando reencontrar um equilíbrio mais razoável entre o público e o privado. Se é que já o tivemos.

Outra crítica é sobre como usamos as palavras. Somos tagaleras, estamos o tempo todo jogando palavras ao vento e muito de nossas hipocrisias provêm desse fato. Na maioria das vezes ainda usamos a retórica apenas como a arte do convencimento e não para buscar a verdade ou algo mais próximo a isso. Palavras são códigos que permitem todo tipo de elucubrações, desvios de intenção, falseamentos, floreios, construções retóricas e semânticas fictícias, discretas ou descaradas, que muitas vezes se distanciam drasticamente do pensamento, e este, por sua vez, pode se distanciar anos-luz do sentimento, que fica a três idas a Júpiter do inconsciente. Mesmo assim, construímos em grande parte nosso mundo com essa poderosa e, tantas vezes, perigosa ferramenta, fabricante de crenças, preconceitos, conhecimentos, costumes, leis e, felizmente, também de poesia. Mas é o que temos, pelo menos até hoje. E palavras podem ser boas, assim como as relações. Só não são aquilo que prometem ser ou que gostamos de acreditar que são. Disso, porém, todo mundo sabe.  

Saramago é uma inspiração? Me lembrou um pouco o português o episódio pitoresco que desencadeia a "leitura de pensamentos".

Não me lembro de ter tido qualquer inspiração direta para escrever este livro. Sou afetado por tudo que leio, vejo e sinto, enfim, por toda minha história de vida, a cada instante. A coisa brotou, veio como veio. Escrevi as trinta primeiras laudas num rompante, atravessando dias e noites. Tendo a acreditar que "se não brotar, não é arte". Mas isso serve apenas para mim. Cada um tem seus processos. Minha ideia inicial, que se tornou central na trama, foi estabelecer a leitura de pensamentos alheios como uma metáfora da era da hipercomunição e hiperconexão em que vivemos e na qual estamos mergulhando cada vez mais.

Conhecer o pensamento dos outros é um exercício de desconstrução dos pilares morais. Vamos enfrentar verdades, falhas, vaidades, maldades, dentre outras coisas. No livro o que se sugere é que precisamos (nós de cá, ou seus personagens na ficção de Trustália) ser mais pragmáticos e realistas, menos utópicos?

Outro forte conflito na trama, por conta da sinistra comunicação absoluta que se instala entre os habitantes do povoado de Trustália - à revelia de todos - é justamente não haver mais como sustentar as verdades fictícias que há tanto tempo carregamos. Esse abandono é dramático, somos viciados em símbolos, em representações. Cada um de nós é uma ficção, movido e acometido quase totalmente apenas por ficções. Pare para observar seu pensamento por cinco minutos. Tudo o que pensamos está ligado a invenções humanas. E todo esse mosaico fictício são substituições de nossos afetos e medos mais profundos, os quais muitas vezes preferimos manter encondidos ou enterrados. Imagino que por isso fazemos tantas escolhas equivocadas, pessoalmente e como sociedade. Mas, na história, de repente tudo se torna tão evidente, que até as palavras começam a perder legitimidade e podem se tornar obsoletas.

Por último: Trustália, como explicado no release, vem do inglês "trust", confiança. Você fala basicamente sobre a confiança que se constrói para além das aparências morais e hipócritas?

A ideia não deixa de ser um clichê, mas vejo alguma legitimidade nisto: a confiança se constrói muito mais pelo que não falamos, pelos silêncios produzidos nos intervalos de nossas tagarelices. No caso deste livro a confiança acaba se construindo mais pela cumplicidade, independentemente de suas bases.

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