O amor entre Colin e Chloé é puro, beirando o pueril. É um romance platônico (na acepção usada pelo filósofo italiano Marsilio Ficino), sem um pingo de sexo ou desejo forte. Escolha que é a chave para entrar no estranho universo narrativo de "A Espuma dos Dias", que estreia sexta-feira (26) no Belas Artes, Cine 104 e Ponteio. Ficino falava de um amor baseado na beleza do caráter. De homens de virtude. Em essência, é do que trata o mais novo longa-metragem do sempre extravagante diretor francês Michel Gondry, o mesmo de "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças", "Rebobine, Por Favor" e "Sonhando Acordado". A menção a Platão diz muito também sobre a concepção em forma de tragédia grega adotada por Gondry, que se baseou no livro homônimo de Boris Vian publicado em 1946. Os valores éticos são imutáveis, mas o destino entra em cena para levar à prova os protagonistas, quando Chloé descobre que carrega uma flor de lótus no pulmão. Inércia O conflito, como nos dramas da Antiguidade, não se dá propriamente entre os personagens, mas sim com algo ou um conjunto que está acima deles. O que surge em questão é a sociedade, na sua inércia e perfídia. Enquanto não precisa dela, o casal vive feliz ao lado de seus amigos, como no passeio de aeronave em forma de nuvem. Os objetos de cena, os figurinos e as locações, que mais parecem saídos de um quadro surrealista, ajudam a estabelecer esse contraste. Colin, vivido por Romain Duris ("Albergue Espanhol"), é um rico que não precisa trabalhar e, como numa animação da Disney, tudo nessa casa "viva" funciona em torno dele, simplesmente para favorecê-lo. Com a chegada do amor também vem o sofrimento. Chloé, interpretada por Audrey Tautou, adoece e seu marido precisará arrumar emprego para pagar os dispendiosos remédios. É outro pilar da tragédia grega, absorvida por Shakespeare, em que um elemento externo a esse enlace vê o momento como oportuno para interferir de modo doloroso. Penúria O que era divertido e funcional no mundo de Colin se transforma em penúria, desmantelando-se com a piora de Chloé. Gondry fez algo semelhante em "Brilho Eterno" (ganhador do Oscar de roteiro original), quando o personagem de Jim Carrey luta contra o apagamento de suas memórias relacionadas à namorada. O confronto entre o ideal e a sociedade aparece nos outros filmes, mas em "A Espuma dos Dias" ganha uma inflexão sombria. Ao sair de sua fantasia e encarar a realidade, Colin é apresentado ao trabalho escravizador e aos governos morosos, representados no carro de polícia que conta com pés para se locomover, no lugar de rodas.