Entre os mandamentos de todo fã estão: ser um dos primeiros a chegar ao local do show para se posicionar próximo ao palco; ficar horas esperando na porta de hotel ou camarim para tentar um contato tête-a-tête com o artista; colecionar inúmeros discos, pôsteres, camisetas e ingressos de apresentações ocorridas nos mais variados lugares; decorar T-O-D-A-S as músicas, inclusive as do “lado B”.
Esse é o perfil básico daqueles fãs de carteirinha, que estendem o gosto pela música à idolatria por determinado artista ou grupo, como mostra “Waiting for B”, documentário que acompanha os admiradores brasileiros de Beyoncé na passagem dela por São Paulo, em 2013 – a estreia é nessa quinta-feira nos cinemas. Mas há os que extrapolam essa relação e acabam sabendo mais sobre seu objeto de culto do que o próprio.
É o caso do auxiliar administrativo Vanderlei Oliveira, o maior fã do Capital Inicial em Minas Gerais. Presidente do Fã Clube BH Capital Inicial há três anos, ele presenteou o grupo criado em Brasília com um CD tão raro (o “Rua 47”, lançado em 1994) que nenhum dos integrantes atuais tinha o disco no acervo. Ele havia adquirido o álbum num site especializado em compra e venda on-line, pagando em torno de R$ 200.
“Na época, o disco teve uma tiragem pequena. O grupo não estava ligado a uma grande gravadora e lançou através de um selo independente do Fê Lemos, baterista do Capital. Ele não foi bem aceito, porque era muito diferente do que a banda havia feito, com um rock bem pauleira. Sem divulgação e baixa vendagem, acabou se tornando um dos discos mais raros do rock nacional”, salienta Vanderlei.
Outra raridade no acervo dele é um disco de ouro arrematado num leilão virtual, em 2013. A peça, geralmente pendurada na sala de estar dos artistas, é uma homenagem da gravadora pelo primeiro álbum de carreira do Capital, lançado em 1986. “Esse disco acabou ficando para uma rádio, nem sei o porquê. Quando ela fechou, leiloou várias coisas, como um disco de ouro do Cazuza”.ARQUIVO PESSOAL / N/A
Fernanda está em Salvador para ver Bell e cia.
Pedido de casamento
Ser fã, no caso de Vanderlei, é aproveitar cada minuto livre para dar uma espiada nos sites especializados em busca de itens de coleção. “Descobri o leilão por acaso e acabei arrematando por sorte. Havia outras pessoas disputando e usei um pouco de estratégia, só dando um lance no finalzinho do anúncio”, observa Vanderlei, que também faz o tipo “vou onde eles estiverem”.
Ele já perdeu a conta de a quantos shows foi. O mais longe que chegou foi Guarapuava, no Paraná, e Salvador, na Bahia. Em muitos desses casos, bateu ponto na porta de hotéis. “Em Curitiba, eu virei a noite. O show acabou e eles levaram umas quatro horas para retornar ao hotel. Tinham tomado algumas, mas pararam para conversar”, recorda o auxiliar administrativo, de 33 anos.
Foi numa dessas viagens que ele conheceu Caroline, sua noiva. Ela foi uma das sorteadas de uma promoção feita pelo fã-clube. O primeiro encontro foi num show no Rio de Janeiro, em 2014. O pedido de casamento seguiria a mesma lógica, com o vocalista Dinho Ouro Preto chamando-os para o palco do Metropolitan, também no Rio. “Mas teve um problema de comunicação e o Dinho não leu a minha mensagem a tempo”, lamenta.
Sobrevivente
A relação de Jeová Guimarães com os Beatles ultrapassa a idolatria. É, como ele gosta de dizer, um estilo de vida. Tanto é que o produtor musical há 12 anos não veste outra coisa que não uma camisa estampada com o quarteto de Liverpool. “Eles não ficaram apenas na música. Eu vivo Beatles, bebo Beatles, fumo Beatles e visto Beatles”, salienta Jeová, que segue aquilo que as famosas canções propõem, “sempre praticando o bem”.
E é a eles que Jeová agradece pela boa saúde que tem hoje, aos 62 anos. Lembra que, da sua turma dos anos 70, muitos morreram ou estão “vegetando”. Um amigo observou que o produtor é protegido por quatro santos. “Você nunca viu os Beatles metidos em confusão. Até as drogas, eles souberam administrá-las e sair fora. Nos meus 15 anos, quando eles terminaram com o grupo, eu já tinha ouvido toda a carreira deles e estava pronto para o mundo. Aprendi com eles e por isso sou um sobrevivente”, destaca Jeová.
Tatuagem
A analista financeira Fernanda Moreira dos Santos, 36, acabou de marcar no corpo a paixão pelo grupo baiano Chiclete com Banana. Fez uma tatuagem no pulso pouco antes de ir para Salvador seguir o trio elétrico de Bell Marques e companhia durante o Carnaval. Em anos anteriores, ela estendeu uma faixa de dois metros no camarote, o que chamou a atenção de Bel, que lhe agradeceu nominalmente.
“Começou há 20 anos, após uma das primeiras apresentações de Axé em Belo Horizonte. Passei a comprar os discos deles e não parei mais”, registra Fernanda, que tem em seu quarto desde chinelo e mochila à capinha de celular.
O próximo encontro já tem data para acontecer: 18 de março, no show “Bel Toca as Antigas”, em Brasília. “Irão 52 pessoas de Minas para lá. Já compramos ingresso, passagem e fechamos um hotel”, conta.FLÁVIO TAVARES / N/AHá 12 anos, Jeová só veste camisa do quarteto de Liverpool, em qualquer ocasião
Filme revela que fãs cobravam o engajamento que veio depois
O que leva uma pessoa a montar uma barraca, na porta de um estádio, enfrentando todos os tipos de situações, do frio à chuva, dois meses antes da realização de um show? Foi com essa pergunta na cabeça que o diretor Paulo César Toledo levou uma câmera para o Morumbi, após ler as primeiras reportagens sobre fãs de Beyoncé acampados.
Não imaginava que dali resultasse um longa-metragem que, além dos aspectos inusitados que envolvem esse tipo de fã, faria um raio-x social daquele público, em sua maioria homossexual, pobre e negro. “Achei que poderia render uma coisa curiosa, um curta de 15 minutos sobre um assunto que tem a sua graça e personagens interessantes”, afirma.
Logo veio à mente um documentário de 1999, “Paris is Burning”, sobre drag queens de classe média em Nova York, em que “a dança surge como um modo de se expressar, de não deixar se oprimir, como se naquele momento eles tivessem total liberdade”, como destaca o cineasta, que buscou enfatizar essa ideia de empoderamento em “Waiting for B”.
Ali eles podiam ser tudo o que quisessem, enfrentando todas as intempéries, do tempo às pessoas que os xingavam e jogavam coisas”, observa Paulo César. Os fãs discutem na frente da câmera sobre suas opções, suas condições financeiras, mas sem jamais baixarem a guarda. O que vale até mesmo uma crítica à pessoa que idolatram.
“Filmamos há pouco mais de três anos, antes de Beyoncé lançar esse disco mais engajado dela, o ‘Lemonade’. Isso não veio do nada, era que já estava sendo cobrado dela. No Morumbi, os fãs diziam que ela poderia ser mais engajada. Mas ela se envolveu na questão do negro e do feminismo. Do público GLBT, não”, analisa o realizador brasileiro.
Um aspecto curioso do filme é que não há uma cena sequer de Beyoncé. Nem mesmo as músicas se fazem presentes. A razão não está apenas na liberação – sempre difícil e onerosa – dos direitos autorais. “A Beyoncé já tem plataformas suficientes no mudo para expor o que ela quiser. Queríamos mostrar os fãs, que são os protagonistas desse filme”.
VITRINE/DIVULGAÇÃO / N/A
Beyoncé não aparece em nenhuma cena de "Waiting for B"; os fãs são os verdadeiros protagonistas