O artista visual Gilberto de Abreu tem dois bons motivos para fazer uma espécie de “revisão comemorativa” da diversa trajetória dele neste ano.
O primeiro é o lançamento do livro “Gilberto de Abreu – Depoimento” (Editora C/Arte) e da exposição dele, na Galeria Manoel Macedo, ambos no dia 20 de fevereiro.
O segundo, e que guarda uma bela história, são os 40 anos da criação da tela que ilustrou dois discos do amigo de infância dele, o músico Beto Guedes. Em um dos discos, a tela se transformou em uma das capas mais emblemáticas da discografia nacional – o simpático boneco de “Sol de Primavera”.
Homenagem
Na exposição, além de trabalhos retrospectivos, Gilberto de Abreu vai trazer novas produções. Haverá também instalações e performance ao vivo, transmitida on-line pelo canal do artista no YouTube.
No evento serão expostos trabalhos como as mais de 20 telas sequenciais de “N1Segundo”, uma homenagem, de acordo com ele, “ao leite materno, ao cinema e à mulher”.
Outro trabalho que irá para a mostra é a gigantesca instalação “Gênesis, Decifra-me ou te Devoro”, onde o visitante entra por uma boca de mulher (decifra-me) e sai pelo meio das pernas da mesma, após passar por um túnel (eis a gênese, o nascimento!).
Casa-Torre
Está tudo sendo reformado ou concluído na “casa-torre”, onde o artista visual vive. O local, que fica no bairro São Salvador, região Noroeste de Belo Horizonte, foi construído por ele mesmo ao encarnar o pedreiro da família. “Se o passarinho faz a casa dele, por que eu não posso fazer a minha?”, desafia.
E a casa é realmente de um artista: quadros por todos os cantos, arte, arte, arte. Na cozinha, sobre o chão de cimento, divertidos grafismos de caras e bocas que o artista também pintou.
Artista vive e trabalha em uma casa-torre construída por ele mesmo. Foto: Ricardo Bastos
O amigo Beto Guedes e o boneco de fio de telefone
“Ele é aquele cara que fala de amor. Daquela forma ampla... Até hoje somos amigos. Quando nos encontramos, são horas de conversa”, fala Gilberto de Abreu sobre Beto Guedes, que conheceu na juventude. A tela de Gilberto de Abreu, intitulada “Meu Avô Cientista”, entrou no miolo do primeiro álbum solo de Guedes, “A Página do Relâmpago Elétrico” (1977). Como capa, veio em “Sol de Primavera” (1979).
A criação da tela foi simples como é o sentimento transmitido pela imagem. Era 1976. Gilberto de Abreu trabalhava em uma agência de publicidade e morava na Serra, com a primeira mulher, Miriam, falecida nos anos 90. “Estava saindo de casa com ela, vi um pessoal arrumando o fio do telefone no poste e uns pedacinhos destes fios no chão. Peguei alguns e fiquei brincando de modelar. Moldei o boneco”.
No mesmo dia, ele se encontrou com Beto Guedes, que o viu brincando com os fios. Ele estava com o músico Zé Eduardo, que dividia o mesmo apartamento com Abreu e a esposa. Guedes teria ido até o apartamento e visto os trabalhos de Abreu, mostrando interesse de ter alguma obra do amigo de infância no novo disco. “Ele estava preparando o ‘Relâmpago Elétrico’. Eu já estava com este bonequinho. Pensei em terminar e dar para ele”, lembra.
Assim, Abreu costurou com linha o boneco de fios de telefone sobre um papel desenhado com aquarela e lápis de cor e levou para Guedes. Para “Sol de Primavera”, Abreu precisou fazer outra paisagem, mais ampla, que abarcaria a capa e contra capa do LP.
“Era algo já na tridimensionalidade e trazia um material como o fio de telefone, com algo de modernidade. Hoje, a obra está com uma família de colecionadores no Rio de Janeiro”, observa o artista.
INSTALAÇÃO - A obra "Gênesis, Decifra-me ou te Devoro" integra a exposição na Galeria Manoel Machado
Infância foi vivida com a turma do famoso Edifício Levy
Natural de Espinosa, no Norte de Minas, o artista mudou-se para a capital na infância, época na qual morou no Edifício Levy, no Centro da cidade, onde passou a integrar a turma de outros futuros artistas, entre eles, Lô e Yé Borges.
Eu tinha 11 anos. No primeiro dia, já de cara, conheci o Lô. Éramos uma turma. O Milton (Nascimento) estava lá direto. A gente se encontrava na Tupis com São Paulo. Sábado e domingo, a cidade era nossa. Fechávamos a rua para jogar bola. A polícia vinha, a gente corria e jogava a bola pela janela do segundo andar da casa de outro amigo”.
Naquela época, enquanto os vizinhos tocavam, Gilberto desenhava. O dom, diz, ele passou a acreditar que carregava por acaso. “Eu tinha 8 anos, estava em um campinho do grupo escolar em que estudava, desenhei uma caveira e a meninada curtiu demais. Então, acreditei que eu desenhava bem mesmo. Passei a desenhar pelo bairro inteiro com caco de tijolo, gesso”, lembra. Nessa época, morava no Floresta.
“O que é o incentivo nessa coisa toda! Quando você está procurando alguma coisa nova, você está muito frágil. Daí, a importância do incentivo”, filosofa.
Liberdade
Em 1972, Abreu entrou para o curso livre da Escola Guignard. “Com a mesma liberdade que entrei, saí. Comecei a me interessar por quadrinhos e tomei noções de desenho animado”. Nesta vertente, o artista atuou em diversos trabalhos nos anos 1980.
Jogar bola no adro da Igreja São José, pegar coquinho no Parque Municipal e saber qual é a entrada secreta em todos os cinemas de rua do Centro de BH. Hábitos impossíveis hoje. Mas que ainda estão vivos na memória do artista. “Essa ânsia de liberdade que a gente tinha. A cidade era nossa!”, repete.
ALÉM DISSO...
Outro trabalho de destaque de Gilberto de Abreu é o encarte do disco “Nuvem Cigana” (1982), do também amigo da época do Edifício Levy, Lô Borges. Além disso, o artista visual dedicou-se a fazer cenários de shows, como em “A Via Láctea”, também de Lô. Em 1980, com Toninho Horta, ele participou da Orquestra Fantasma, também como cenógrafo.
Hoje, ao lado dos cinco filhos e dos netos, Abreu ainda cria e planeja um outro livro, mas de memórias, ainda sem data para ser publicado. Enquanto isso, o bairro São Salvador guarda a casa-torre do artista onde, lá do 5º andar, ele fica a pintar os pontilhados das luzes de BH.
Exposição e lançamento do livro de Gilberto de Abreu em 20 de fevereiro, das 11h às 15h, na Galeria Manoel Macedo (rua Lima Duarte, 158, Carlos Prates). Visitas até 27/2. Vendas do livro pelo (31) 3491-2001.