Doutor, professor ou Ivo? “Pode me chamar da maneira que você se sentir mais confortável”, descomplica o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Neste mês, ele lança a biografia “Viver Vale a Pena” na qual aparece como um adepto do ato de proporcionar conforto às pessoas, especialmente na relação delas com o corpo.
Aos 88 anos, este belo-horizontino hoje não faz mais cirurgias, mas usa de sua experiência respeitável para aconselhar pacientes de todo mundo que vão à sua clínica e à 38ª Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia idealizada por ele, ambas no Rio de Janeiro. Ricos ou pobres, eles vão ao médico sedentos por uma maior satisfação com suas vestimentas em carne e osso.
O traçado das ruas e o estilo de vida na capital mineira ainda estão vivos na mente deste que é considerado o “maior cirurgião plástico do mundo” – título que Pitanguy elegantemente afirma não existir. Na esquina das ruas Padre Rolim e Piauí, aos 4 anos de idade, ele teve o primeiro contato com a morte, quando seu cachorro Bob foi atropelado na sua frente. No Minas Tênis Clube, ele tem histórias da equipe de natação da qual era integrante ao lado do escritor Fernando Sabino (1923-2004). “Hoje, vou aí menos do que gostaria”, lamenta ao Hoje em Dia.
Foi também em BH, ao lado do pai, que era cirurgião-geral, onde ele aprendeu que “amar a medicina é amar o ser humano”. “Após me matricular na Escola de Medicina de Belo Horizonte, todos os dias eu saía das aulas e encontrava meu pai no hospital onde operava. Aprendi com ele a distinguir os instrumentos cirúrgicos, assistia às cirurgias e realizava pequenas suturas”.
Pitanguy também estudou nos Estados Unidos, França, Inglaterra. Com a experiência, ajudou a elevar a importância da cirurgia plástica, especialmente no Brasil. A área era considerada até então como uma especialidade médica menor.
“Trabalhando no hospital Pronto-Socorro, eu ficava impressionado com as fisionomias marcadas pela violência. Sequelas de queimaduras, malformações congênitas e narizes disformes não merecem atenção? Devolver a dignidade às vítimas dessas malformações pode ser considerado algo menor?”.
O médico realizou mais de 60 mil cirurgias mundo afora. Radicado no Rio de Janeiro com a esposa, ele passa os fins de semana em sua ilha, em Angra dos Reis. Tem quatro filhos e cinco netos. Pitanguy também é imortal da Academia Brasileira de Letras.
Este é o quase nonagenário Pitanguy em “Viver Vale a Pena” (Editora Casa da Palavra, 432 págs., R$ 45, impresso, ou R$ 30,99, e-book). “Não contei tantos anos ainda. Mas contarei três anos a menos. Em vez dos 90, 80 e poucos. Dá mais dignidade. (Risos) Mas na verdade, acredito que o bem estar vem mesmo é do espírito”, ensina.
Do desmaio à injeção de ânimo
O primeiro testemunho de uma cirurgia que Ivo Pitanguy fez foi ao lado do pai o cirurgião-geral Antônio de Campos Pitanguy. Resumo da ópera: o menino desmaiou! Diante do susto, mesmo já inclinado a seguir a profissão do pai, o jovem aspirante o questionou se ele realmente acreditava no talento do filho na profissão.
A injeção de ânimo então foi sábia: “Ivo, uma vida depende de nós. É preciso ser racional”, ensinou o pai. E desde então, o empurrão cheio de sábia intuição deu frutos.
“Tive infância incomum, calma e doce, livre de tragédias ou perdas que marcam a vida de tanta gente. Belo Horizonte era uma cidade cheia de árvores, ruas largas e ar muito puro. Nossa casa ficava em uma rua com suave aclive, e um grande quintal pontilhado de mangueiras e extensa biblioteca”, lembra o cirurgião, na publicação que chega às livrarias. Leia a seguir a íntegra da conversa com o biografado:
Qual é a melhor e a mais dolorosa lembrança que o senhor tem de Minas?
Nunca cultuei a mais e a menos. Mas eu tenho lembranças de Minas muito gostosas da minha casa, na Rua Piauí. O quintal da minha casa, os meus pais, os meus bichinhos, a mangueira que eu subia e a queda que eu tive desta mangueira. Eu tenho lembranças de eu jogando futebol de esquina. O Minas Tênis Clube. Todas as lembranças se misturam. O Grupo Escolar Pedro II...
E as doídas?
Dolorosas, tenho uma na Piauí com Padre Rolim, onde meu cachorrinho Bob foi atropelado. Eu tinha uns quatro, cinco anos. Eu não sabia que existia morte. E perguntava à minha mãe: “Ele vai voltar? Ele vai voltar?”.
O título de “melhor cirurgião plástico do mundo”, como foi construído?
Não existe este título. Não há melhor nem pior cirurgião plástico do mundo.
Mas o senhor já ouviu esta definição muitas vezes na vida...
Eu não sou o melhor cirurgião plástico do mundo, nem me julgaria assim. Eu criei uma das escolas de formação de cirurgia mais importantes do mundo. Criei muitas técnicas, escrevi centenas de artigos e continuo levando adiante o projeto de levar o direito ao bem-estar da imagem a todo mundo, independentemente da classe social. São coisas que eu coloquei como princípio. Não me acho melhor do que ninguém.
Por que esta biografia agora? Não demorou muito a publicá-la?
A própria editora é que queria que eu fizesse uma biografia. Meu livro não é um manual de cirurgia plástica. É uma história de vida. De repente, a gente quer transmitir um pouco daquilo que acha que é uma luta, aquilo que julga que poderia servir a alguém.
Como vê a popularização do uso de silicone?
Uma das grandes vantagens do uso do silicone foi a melhora da qualidade da biotécnica, da prótese. Para reconstruir a mama se usa muito. Quando tira-se uma mama no caso de um câncer, está tirando para curar. Anteriormente, era muito difícil reconstruir uma mama sem ter uma prótese. É o lado muito importante fora da frivolidade.
Hoje, realmente há muitas pessoas que exageram nas cirurgias plásticas?
Neste caso, é importante o médico aconselhar o que está ou não indicado. E verificar se o procedimento vai trazer bem-estar a uma pessoa.
Às vezes, um psicólogo é melhor do que um cirurgião plástico?
Não é bem assim... Quando uma pessoa procura um cirurgião e não tem uma indicação é preciso que este procure entender o paciente para aconselhá-lo. É muito importante essa interação íntima entre o cirurgião e o paciente. É o que eu faço hoje é mais esse aconselhamento. Isso é muito importante e a experiência ajuda muito.
Como o senhor gostaria de ser lembrando daqui a cem anos?
Eu terei que imaginar alguma coisa para você, porque eu ainda não pensei nisso... (risos) Eu acho que como uma pessoa que procurou traduzir a sua verdade.