(Lucas Prates/Hoje em Dia)
Desde 1991 destrinchando para os espectadores medidas governamentais que impactam a vida dos brasileiros, sempre pensando na dona de casa que só teve uma formação básica na escola, Miriam Leitão virou sinônimo de economia na televisão. Mas essa é apenas uma das facetas desta mineira de Caratinga, nascida em 1953, que adiou por seis décadas a entrada no universo da literatura. Em Belo Horizonte, durante mais uma edição do projeto “Sempre um Papo”, a jornalista lançou seu 12º livro, o infantil “Aventuras do Tempo”, o sexto dela neste gênero.
“Sempre quis estar neste ‘modo’ escritora. Era um sonho antigo que demorei a realizar. Depois que saiu o primeiro, em 2010, veio aquela coisa caudalosa”, diverte-se Miriam, que também escreve ficção para adultos, não-ficção e crônicas. Nesta entrevista ao Hoje em Dia, ela fala da paixão pela literatura, relembra a época em que foi torturada pela ditadura militar e comenta o estado atual de intolerância de que foi vítima, quando foi “desconvidada”, em agosto, para a Feira Literária de Jaraguá do Sul, em Santa Catarina, por conta das críticas que têm feito ao governo de Jair Bolsonaro.
O recém-lançado “Aventuras do Tempo” é seu sexto livro infantojuvenil. Como surgiu este interesse pelo gênero?
Na verdade, sempre fui uma contadora de história para crianças, após ser beneficiada com as histórias contadas pelas irmãs mais velhas. Este livro foi inspirado pelo diálogo que tive com a neta de uma delas, a Beth, que mora em Belo Horizonte. É o meu trabalho mais mineiro, em que vou pelas minhas memórias, da infância em Caratinga, com tudo que circulava no entorno, como os índios Krenak e o rio Doce. É um mergulho no meu passado, em mim mesma, resultando num caldeirão de afeto. Agora, como comecei a escrever para crianças se deve ao fato de ter contado história para meus filhos e depois para meus netos. A partir deles comecei de novo a inventar histórias, a criar personagens. Fui escrevendo devagar e, de repente, tinha três livros prontos.
Você é reconhecida principalmente por seu trabalho com economia e política, ganhando diversos prêmios nestes segmentos. Como sair de um texto que, costumeiramente, é mais arenoso para algo mais ficcional, que exige uma linguagem própria?
Cada um de nós tem vários lados. Sempre gostei de ler e aprender sobre economia e política, assim como esse lado mais terno, de contar uma história, sou eu também. É engraçado, parece doido, mas às vezes estou escrevendo uma coluna árida de economia, sobre a reforma do presidente, e às vezes tenho uma ideia para os livros. Não são coisas diferentes neste aspecto. Tudo é muito desafiador e difícil. Na economia, gosto de pegar um assunto complexo e, depois de estudar bastante, conseguir explicar às pessoas de uma maneira mais fácil. No caso dos livros para crianças, é preciso ter muito cuidado para criar elementos que este público irá gostar. Uma vez estava numa livraria e uma criança me viu e disse à mãe: “É a escritora do ‘Passarinho’ (‘A Perigosa Vida dos Passarinhos Pequenos’). Me deu uma alegria enorme, porque não estava sendo reconhecida como a jornalista de economia da Globo News ou da TV Globo.
Além do jornalismo e dos livros para crianças, você ainda se debruçou sobre gêneros como romance, não-ficção e crônica. A literatura era uma ambição sua também?
Hoje tenho 12 livros. As crônicas que escrevi para o blog do meu filho, o Matheus, que sai aos sábados, resultou num livro que foi finalista do Prêmio Jabuti. Estou muito feliz de estar entre os cinco finalistas, pois é um livro que nasceu por acaso. O Matheus me perguntou se eu gostaria de escrever no blog dele e eu respondi que só toparia se fosse sobre coisas da vida cotidiana. Tenho muitas ideias, para não ficção e ficção adulta. Tem uma história infantojuvenil que comecei a escrever e está meio parada agora. Sou assim. Cada livro demanda um tempo até eu considerar que está maduro. Alguns são feitos rapidamente, como “Aventuras do Tempo”, que fiz numa visita à minha irmã. Sempre quis estar neste “modo” escritora. Era um sonho antigo que demorei a realizar. Depois que saiu o primeiro, em 2010, veio aquela coisa caudalosa.
Quando surgiu o desejo de ser escritora? Quem foram os seus inspiradores?
Nasceu na minha infância. Gostava muito de ler e era ótima em redação. Um dia, quando o professor pediu para escrever sobre quais eram nossos sonhos, não tive coragem de dizer. O professor percebeu o meu bloqueio e falou para eu escrever sobre o que realmente queria ser. Então escrevi. Ele leu e disse: “você pode ser”. No dia que fui receber o prêmio Jabuti pensei nele e no meu pai, que também dizia que eu seria escritora. Demorei, mas consegui vencer um bloqueio.
Como surgiu o interesse pelo jornalismo econômico?
Foi muito desafiador. Estávamos nos anos 70, a inflação começara a subir e vários desafios foram aparecendo. Meu interesse surgiu naturalmente, em tentar explicar estes problemas para a dona de casa. É este tipo de jornalismo que me interessa. Mais tarde, escrevi um livro sobre a luta do Brasil para ser uma nação controlada, que já está na décima segunda edição. Com ele ganhei um Prêmio Jabuti. Foi uma vitória para mim, pois não vejo a economia como uma coisa complicada. Ela serve para entender a realidade de um país. Por ela você vê melhor a política.
Seu filho Matheus Leitão escreveu o livro “Em Nome dos Pais”, relato do período em que você foi torturada pela ditadura militar, em 1972. Alguns assuntos, disse ele, só foram descobertos durante a pesquisa, sem jamais serem falados em casa. O tema ainda é tabu para você?
Não. O que aconteceu foi que a gente, quando jovem, tinha que educar e criar os filhos, fazer uma carreira, num mundo muito machista. Havia muitas lutas para lutar. Não fiquei remoendo o passado. Não se falava em casa porque estávamos correndo atrás de outras coisas. Depois que o Matheus cresceu, ele entendeu o que tinha acontecido, de uma violência muito grande, e que tinha atingido o pai e a mãe, que estava grávida do primeiro filho. Todos tinham participado daquilo, exceto ele, que nasceu depois. Ele era a pessoa mais capacitada para fazer a pesquisa, tendo falado com o delator, com os torturadores. Fez um caminho que só ele poderia fazer, valendo-se do jornalismo investigativo para fazer uma grande reportagem. É a história de um tempo, inclusive da ditadura, que teve vários momentos.
Esta história de militân-cia contra o regime ditatorial e suas análises sobre as ações do governo Bolsonaro levaram a um episódio recente, em que você teve que se “desconvidada” pelos organizadores de uma feira literária em Santa Catarina, após uma campanha nas redes sociais contra a sua participação. Como tem recebido estas ações de censura?
A intolerância é uma doença que atinge os países em alguns momentos. E está acontecendo conosco agora. Meu debate não teria nada de política. O tema era sobre livros e afeto, sobre a paixão pela literatura que eu e meu marido (o sociólogo Sérgio Abranches, que também foi desconvidado) temos. Foi esta paixão que nos aproximou. Mas é um absurdo o que acontece hoje. Felizmente, pude falar deste mesmo tema, na semana retrasada, no Rio de Janeiro. Então, há outros lugares para falar.
Como você tem visto estes ataques à imprensa e à cultura?
Acredito que, no futuro, vamos superar isso com mais diversidade. Uma ministra que fala que a mulher tem que ser submissa está com uma agenda do passado. Evidentemente a mulher terá cada vez mais autonomia e independência. Um discurso anti-ambiental também não está na agenda do futuro. São visões que não terão sustentação no futuro, pois este é diverso em gênero, em biodiversidade...