Lygia do lado de lá

Clarissa Carvalhaes - Hoje em Dia
08/06/2014 às 09:37.
Atualizado em 18/11/2021 às 02:55

(Robert Schwenck)

Lygia Clark (1920–1988) está para a arte contemporânea no Brasil assim como Machado de Assis está para a literatura. E não é, portanto, de se estranhar que passados 26 anos de sua morte, sua obra não tenha ficado no passado. Ao contrário. Seu trabalho ainda é precursor de movimentos que só agora começam a ganhar espaço.

“Lygia, ouso dizer, foi pioneira mundial na interatividade tão em moda no planeta de hoje, 60 anos depois”, comenta Álvaro Clark, filho e presidente da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”, em entrevista ao Hoje em Dia. Há poucas semanas, um dos mais importantes museus de arte moderna do mundo, o MoMA, em Nova York, abriu as portas para a exposição “Lygia Clark: O Abandono da Arte, 1948–1988”. Considerada a mais completa retrospectiva da artista, a mostra fica em cartaz até 24 de agosto.

Nela foram reunidos aproximadamente 300 trabalhos, entre desenhos, pinturas, esculturas e projetos participativos, provenientes de coleções públicas e particulares, incluindo o próprio acervo do museu norte-americano.
Segundo Álvaro Clark, todas as obras que compõem a exposição foram escolhidas pelo próprio MoMA e contemplam a produção da artista desde o final dos anos 1940 até o começo da década de 1980, dividindo-se nos temas-chaves: “Abstracionismo”, “Neoconcretismo” e o “Abandono da arte”. “O que está ali é o trabalho de 13 anos da Associação”, afirma ele, destacando que a instituição surgiu com o propósito de defender a obra da artista e disciplinar um mercado altamente contaminado.

“Além disso também organizamos os arquivos pessoais, incluindo diários e casos clínicos da ‘Estruturação do Self’, imagens de obras, inúmeros textos de Lygia e sobre Lygia, totalizando 16.500 laudas e 6.500 imagens digitalizadas em baixa e alta resolução”, enumera.

Vale destacar que, em prol da Associação, os herdeiros de Lygia abriram mão dos direitos autorais assegurados por lei para bancar o projeto. Sempre atento ao que é vinculado ao nome da mãe, Álvaro reconhece que é muito odiado às claras e admirado nas sombras. “Eu não agrado àqueles que tentam dominar os artistas e suas criações”, admite.

Leia abaixo a entrevista concedida pelo filho de Lygia onde, além de falar sobre a exposição em Nova York, ele conta detalhes sobre o documentário que está prestes a sair do forno e as dificuldades em administrar um trabalho que deixou marcas profundas não apenas nas artes plásticas, como no universo da psique humana.

‘A obra de Lygia é uma obra complexa’

Por que a Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark” enfrenta tantos problemas?
A obra de Lygia é uma obra complexa. É mais científica do que artística, apesar de utilizar a plástica como passagem. Seu trabalho foi imperdoável pelas duas classes. Na artística, por desprezar as áureas decorrentes da consagração e, ao se sacudir dos confetes, ir em direção à terapia. Na científica, por se confrontar com os poderosos e inquestionáveis senhores dominadores da mente humana. Lygia partiu como uma clochard ‘sem-casa’ em Paris para conquistar uma cadeira na Sorbonne (universidade franc). Hoje enfrentamos os escroques que querem levar vantagens com as certificações. Falsários que tentam transformar sete pedaços de alumínio mal copiados, feitos a um custo de R$ 2 mil em peças autenticadas – e cujo preço de mercado passa a ser de US$ 2 milhões! Por tudo isso, a Associação realiza um processo rigoroso, justamente para evitar esses oportunistas.

Nova York é a primeira cidade a receber “Lygia Clark: O Abandono da Arte (1948–1988)”, considerada uma das mais completas mostras da artista. Essa exposição foi pensada especialmente para o MoMA?
Não, absolutamente. Antes do MoMA, a Associação foi procurada por um importante museu americano em construção que queria fazer sua inauguração com a primeira grande retrospectiva de Lygia nos Estados Unidos, mas eles demoraram a assinar o contrato conosco. Foi então que o MoMA solicitou a preferência, aceitando nossas exigências.

E quais eram?
A exigência básica era que só fossem exibidas obras com a certificação de autenticidade conferida pela Associação, processo que é efetuado gratuitamente por nós. As obras expostas foram escolhidas a critério do museu.

E quanto tempo a Associação dedicou especificamente para conceber esta exposição?
Para ser absolutamente franco, muito pouco tempo para a exibição em si, pois simplesmente transferimos os nossos arquivos. Os textos e imagens, hall de colecionadores com obras certificadas, seus contatos, obras e fotos, tudo isso que foi entregue ao MoMA é resultado de um trabalho de 13 anos. Não cobramos qualquer tipo de direitos autorais ou custos. Nosso único ganho foram 400 catálogos em inglês, que só poderão ser vendidos no Brasil.

A Associação também está à frente do documentário sobre Lygia. Em que pé ele está?
Em fase de finalização. Deve ficar pronto até o final de junho e deverá ser lançado em Londres e Paris, simultaneamente. À frente dele está a cineasta Daniela Thomas, que realizou há poucos dias a última das entrevistas em Londres – com Sir Guy Brett (um dos maiores críticos de arte do mundo ainda vivo, e que introduziu Lygia na Europa). O documentário teve um patrocinador-colecionador, parceiro desde o início da fundação da Associação, em 2001, e que fez um adiantamento de aproximadamente US$ 100 mil para podermos nos instalar: Luis Antônio e Luciana de Almeida Braga. Além deles, contamos também com duas galerias de arte que nos representam em dois continentes diferentes (Dan Galeria, no Brasil e Alison Jacques, na Inglaterra). E outros ainda em conversação. Por motivos éticos, temos recusado patrocínio de colecionadores com obras ainda em processo de certificação.
Do país onde despontaram artistas como Lygia, o cineasta Glauber Rocha (1939–1981) e o artista Hélio Oiticica (1937–1980), como você enxerga a produção artística atual?
Uma vez perguntei à minha mãe o que seria arte e como entendê-la. Ela me disse simplesmente: “você olha, gosta ou não gosta”. Portanto, além disso, não sei mais nada. Eu só sei que a obra de Lygia, pela sua linearidade – tem princípio, meio e fim – é mais ciência do que arte. Sou um peão, trabalhador braçal, administrador, um Pitbull das artes, muito odiado às claras, admirado nas sombras, pois não agrado àqueles que tentam dominar os artistas e suas criações. Enfim, não entendo a arte, só a admiro e administro.

Lygia Clark foi a precursora na interatividade; provocou o enlace entre arte e o estudo da psique humana. Para você, qual o maior legado da artista?
Em 1959, com a criação do “Bicho”, Lygia “transferiu” a autoria da obra ao espectador. Ela, ouso dizer, foi pioneira mundial na interatividade tão em moda no planeta de hoje, 60 anos depois. Em outra fase, depois de declarar-se “não mais artista”, ela atravessou uma linha proibida e bateu de frente com outra ciência. Sem qualquer tipo de formação acadêmica, comprovou sua tese da “Estruturação do Self” – que até hoje é olhada com desconfiança pelas classes tradicionais que lidam com a psique humana. O maior legado de Lygia foi o de ser a facilitadora do contato terapeuta X paciente, fazendo um pré-diagnóstico para quando o psiquiatra recebesse o paciente. A memória do corpo descoberta por ela revela que o toque no lugar certo da pele pode desvendar a memória psíquica ligada à neurose.

E qual obra de Lygia mais comove você?
“1968 – Nós Somos Os Propositores”. Reproduzo aqui: “Nós somos os propositores: nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência. Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê. Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação. Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado nem o futuro, mas o agora”.  

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