Para Fernando Gabeira, 'o próximo período tende a ser de um grupo mais à direita'

Paulo Henrique Silva
phenrique@hojeemdia.com.br
10/11/2017 às 16:51.
Atualizado em 02/11/2021 às 23:38
 (Divulgacao Globo/ João Miguel Júnior)

(Divulgacao Globo/ João Miguel Júnior)

“O filme é parte da minha vida e esta não acabou ainda. O que está no filme já passou. Agora é seguir em frente”, observa o jornalista e político Fernando Gabeira, em seguida à exibição do documentário “Gabeira – Eu Não Fui Preparado para a Vida Doméstica”, no Cine Belas Artes, na semana passada. A sessão em Belo Horizonte registrou a primeira vez que ele viu pronto o filme assinado por Moacyr Goés. Aos 71 anos, esse mineiro de Juiz de Fora nunca parou. Desde a cidade natal, quando pulava os muros da escola, passando pela redação do contestador jornal “Binômio” e pelo sequestro do embaixador Charles Elbrick, em 1969, até chegar no político esquerdista que rompeu com então presidente Lula, foram muitos “Gabeiras”.

Sua história já havia sido retratada na ficção “O que é isso, Companheiro?”, em 1997. Agora ela é levada às telas num documentário de Moacyr Goés. Qual foi sua impressão, após ver o filme pela primeira vez, em Belo Horizonte?
Pelo o que eu lembro das entrevistas, o filme foi muito correto, muito fiel. Agora, é um Gabeira. Devem ter outros (risos). Não conseguimos definir uma pessoa num filme apenas. Até porque é só um momento de sua vida, pois ela não acabou. Há outras peripécias lhe esperando (risos).

No documentário, Affonso Romano de Sant’Anna observa que você está sempre em busca de um problema novo, algo que as pessoas não se atentaram totalmente. Qual seria o “problema” de agora?
Um problema que todos enfrentamos agora é a revolução digital – como se adaptar, como acompanhá-la, como extrair dela boas consequências. O mesmo vale para a inteligência artificial. São questões que nascem desse desenvolvimento digital, que é muito rápido e muito avassalador.

O filme mostra que, desde pequeno, você está em constante em fuga. De uma forma literal, quando pula os muros da escola, em Juiz de Fora, e de maneira figurada, reinventando-se constantemente, nunca se conformando com um determinado lugar.
O problema da escola não é que eu não gostasse de estudar. Eu gostava, mas tinha uma curiosidade que não era atendida pelo currículo. Eu me sentia muito na necessidade de buscar as minhas próprias respostas. À medida que o tempo passa, cada vez mais eu vou compreendendo que sei pouco, que tenho que estudar, de como estamos sujeitos a equívocos. O processo realmente é bonito, mas não é um processo que você imagina que irá resultar num acúmulo de conhecimento e lhe dar a chave para as grandes questões. Nada. Você continua com questões que ainda são difíceis de serem respondidas e, às vezes, o conhecimento não lhe ajuda.

"Chegou-se a um ponto em que, olhando para trás, todos os benefícios sociais, da maneira como foram feitos, acabaram conduzindo o país a esta crise que nós estamos vivendo”


No início de sua carreira de jornalista, você passou pela redação do “Binômio”, um jornal de Belo Horizonte que adotava um estilo de confrontamento em relação ao regime militar. Como foi essa experiência?
Era um semanário de oposição, que tinha um papel fundamental de denúncia. O “Binômio”, na verdade, é um precursor na luta contra a corrupção. O eixo dele era exatamente esse, noticiando a corrupção do governo de Bias Fortes, que, se não me engano, era do PSD (Partido Social Democrático). Curiosamente, ele não era necessariamente um jornal de esquerda. O jornal tinha uma proximidade maior com a UDN (União Democrática Nacional), um partido de classe média que denunciava a corrupção. O jornal sofreu muito durante o golpe, com quebra-quebra na redação, e depois desapareceu. Mas deixou uma história importante, porque não foi apenas um jornal de oposição. Ele tinha qualidades gráficas, bom texto, revelou excelentes jornalistas, como Roberto Drummond. Vários jornalistas importantes daqui de Minas saíram do “Binômio”.

Numa entrevista recente com o diretor João Moreira Salles, ele falou da depressão e da nostalgia que muitos carregam da época das manifestações na década de 60 e que você seria uma exceção no Brasil, nunca deixando de seguir em frente.
Olha, talvez não seja o único, mas eu acho que o espírito é esse, de tentar me libertar do passado, tentar entender o que está se passando, porque, como eu lhe disse, a vida não se esgota com a experiência que teve. Quando você fica muito nostálgico daquele momento, você, de certa maneira, se identifica com o passado, entra numa prisão do passado.

Em 2019 serão lembrados os 50 anos do sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick, numa ação que você participou ao lado de outros militantes do MR-8 e da Ação Libertadora Nacional. O que lhe vem à memória quando se fala desse episódio, que o levou à prisão e à tortura?
O que bate daquele momento é que foi um erro. Eu lamento que ele tenha sofrido tudo isso. Na época, nós fazíamos com a intenção de salvar companheiros que estavam, possivelmente, morrendo na tortura. Hoje, eu olho para trás e vejo que esse acontecimento também marcou muito a minha relação com os Estados Unidos. Depois desse episódio, nunca pude conhecer o país, que tem uma cultura que eu admiro muito. Compreendo isso perfeitamente. Acho que sequestro é uma violência e tem que ser condenado.

“Eu preferiria um governo mais modesto, que não enganasse muito as pessoas e que buscasse atravessar esse período até a recuperação econômica”

 
Você foi um precursor, na política, na defesa dos direitos dos homossexuais e lutou contra as várias formas de patrulhamento. Como observa essas situações de cerceamento da liberdade artística, com a retirada de exposições de museus por considerarem-nas pedófilas?
Eu vejo isso como um momento que o Brasil está passando, que nasceu da longa experiência da esquerda no poder. E da maneira como a esquerda desenvolveu alguns temas, na maneira de trabalhar a educação e enxergar a arte. Isso repercutiu muito num setor da sociedade que se sentiu ameaçado. O que vem motivando tudo isso é medo de uma das partes de que o outro se imponha ao seu destino. Precisam entender que a situação ideal é compreender o modus vivendi, com as pessoas tendo a possibilidade de viver as suas realidades, independentemente de estas serem iguais ou não. Diversos estilos de vida devem poder coexistir, podendo até acharem alguns denominadores comuns. Isso será fundame0ntal na reconstrução do Brasil.

Como você analisa o conturbado momento político atual do país?
Eu percebo que estamos chegando ao fim de um ciclo político-partidário. Eu acredito que o próximo período está tendendo a ser de dominação de um grupo mais à direita. Por que? Porque a perspectiva de esquerda, do ponto de vista econômico, se mostrou insustentável. Na verdade, chegou-se a um ponto em que, olhando para trás, todos os benefícios sociais, da maneira como foram feitos, acabaram conduzindo o país a esta crise que nós estamos vivendo. Um problema sério foi que a perspectiva econômica da esquerda não ficou clara. Estava falando com o Moacyr (Góes) que, quando os conservadores ingleses perdem uma eleição, eles usam essa folga no poder para refletir. Aqui no Brasil isso não irá acontecer. Em primeiro lugar, porque a reflexão não é tão bem-vinda. Em segundo, as pessoas estão tão atreladas à ideia de poder, física e financeiramente, que elas não suportam esse período longo de desestruturação. Mas vejo que, nesse caminho mais à direita, ele viverá contradições bem grandes, inesperadas.

Quais seriam essas contradições?
A direita tende a ter uma posição de defesa da família e das tradições. Ao mesmo tempo, ela vai ter passar pela revolução do mercado global, que destrói as relações tradicionais. Será difícil ter um governo “puro”, que seja simultaneamente liberal na economia e conservador nos costumes. Certamente viveremos um período diferente, com o surgimento de muita gente falando da necessidade de um projeto nacional. Eu fiquei um pouco desconfiado de projetos nacionais, porque o PSDB tinha um projeto nacional, o PT tinha um projeto nacional, mas percebo hoje que o projeto nacional deles era mais de perpetuação no poder, de ficar 20 anos no poder. Eu preferiria um governo mais modesto, que não enganasse muito as pessoas, buscando atravessar esse período até a recuperação econômica. Ela certamente virá, mas se levar a um momento anterior me parece muito inadequado. Será que vamos continuar ignorando alguns passos importantes para o desenvolvimento sustentável?

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