O conceito mais famoso elaborado por Sérgio Buarque de Holanda é do “Homem Cordial”, presente no livro “Raízes do Brasil”. Ali o sociólogo nos mostrava as origens da cultura corrupta brasileira, sobre a herança portuguesa da indistinção entre o público e o privado. Este conceito serviu de base para estudos da Ciências Humanas por mais de 80 anos, mas não foi suficiente para que o tema “corrupção” ganhasse fortes proporções na produção historiográfica nacional.
Por isso é bem-vindo o livro “Corrupção e poder no Brasil: Uma história, séculos XVI a XVIII”, que a pesquisadora e professora da UFMG Adriana Romeiro lança neste sábado (26), na Quixote Livraria e Café (rua Fernades Tourinho, 274), às 11h. Ela mostra que, no Brasil Colônia, tratadistas, moralistas e autoridades já refletiam sobre a disseminação das práticas ilícitas no governo do Brasil.
Confira a entrevista com a pesquisadora sobre as origens da corrupção no Brasil e a importância de se tratar deste assunto num momento em que os brasileiros se deparam com tantas denúncias de práticas ilícitas no poder público.
Hoje em Dia: Como nasceu o desejo de escrever "Corrupção e Poder no Brasil"?
Adriana Romeiro: Durante meus 20 anos de pesquisadora, eu topei com a corrupção nos arquivos. Vez ou outra, encontrava referências a episódios, a indivíduos, e sempre ficava muito intrigada. Por volta de 2000, encontrei um conjunto de cinco sátiras manuscritas, produzidas em Vila Rica, no ano de 1732. Esssas sátiras, que circularam de mão em mão, faziam graves e pesadas críticas ao governador da capitania de Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida, acusado ali de ser ladrão e de ter se enriquecido de forma ilícita aqui. Durante anos estudei esse material e preparei uma edição crítica dele, que será lançada no final do ano. Quando acabei a pesquisa, me vi obrigada a enfrentar esse tema. E para “pegar o touro pelo chifre”, fui para Madrid realizar um pós-doutorado, pois na Espanha há uma tradição de estudos sobre as ilicitudes na Época Moderna (séculos 16 a 18). Na verdade, a corrupção é que me encontrou. Eu jamais havia imaginado que escreveria um trabalho sobre o assunto. E, hoje, descubro que é um campo de pesquisa muito promissor, e pretendo nele permanecer pelos próximos anos.
HD: Como nasce a cultura corrupta tão presente na sociedade brasileira?
AR: Ela nasce de uma conjunção de fatores. Em primeiro lugar, a tradição patrimonialista ibérica, de caráter medieval, que tendia a esfumaçar as fronteiras entre o público e o privado - como já dizia Sérgio Buarque de Holanda. Essa tradição já era condenada desde o século 16, porque se acreditava que ela subvertia o princípio de justiça que deveria pautar as relações sociais e políticas. Mas tal tradição jamais foi extirpada - e ainda hoje está presente na forma como se faz política no Brasil. Em segundo lugar, o fato de que nós fomos colônia por mais de 400 anos. Desde a carta de Pero Vaz de Caminha, já aparece a percepção do Brasil como terra a ser espoliada, explorada, aproveitada. O Brasil era visto como uma terra de oportunidades, em que as pessoas que não podiam ascender socialmente em seus países de origem encontravam aqui uma chance de eneriquecimento. Enfim, havia o imaginário do Brasil como lugar de enriquecimento vertiginoso. As autoridades que vinham para cá administrar as vilas e capitanias também partilhavam dessa mentalidade: geralmente, esses governantes eram filhos segundos da nobreza portuguesa, que tinham status social mas não tinham fortuna. Vinham para o Brasil para se envolver em negócios, como mineração, tráfico de escravos, agricultura.... Buscavam fortuna – e fortuna rápida. Em terceiro lugar, o fato de que havia uma imensa distância entre o centro e a periferia: as autoridades desfrutavam de grande autonomia e não se viam obrigadas a dar satisfação ao rei. E o rei, por sua vez, sabia que tinha que pagar um preço pela colonização: permitir que as elites usassem de meios espúrios para enriquecer, pois se assim não o fizesse, o império poderia ruir. Eu ainda acrescentaria outro elemento: a escravidão. A escravidão exigiu que os escrúpulos morais fossem deixados de lado, em nome do lucro e do ganho econômico. Da mesma forma que hoje em dia, roubar do Estado não suscitava escândalo ou dores na consciência. Aliás, o Estado brasileiro sempre foi visto como um adversário, um inimigo, que só aparece para cobrar impostos e impor empecilhos à iniciativa privada. Roubar desse Estado era e ainda é, infelizmente, considerada uma atitude legítima e aceitável. Junte todos esses elementos e teremos essa cultura corrupta entranhada no nosso cotidiano.
HD: Quais foram as fontes historiográficas com que trabalhou para desenvolver a pesquisa?
AR: Trabalhei com uma diversidade enorme de fontes. Comecei pela leitura dos tratados morais e políticos escritos na Península Ibérica entre os séculos 16 e 18, que me mostraram a existência do conceito de corrupção para designar as práticas ilícitas dos governantes. Explorei essas fontes para perseguir um conjunto de ideias ou tópicas ligadas ao conceito de corrupção, e descobri que esse conjunto pouco variou no tempo, sendo compartilhado por todos os autores que se debruçaram, naquele período, sobre o problema do governo, especialmente o mau governo. Em seguida, explorei textos e poemas, como os de Gregório de Mattos e Tomás Antonio Gonzaga, e os sermões, especialmente os de Antonio Vieira. Por fim, mergulhei na documentação de natureza administrativa produzida tanto no Brasil quanto em Portugal. Esse foi o percurso que fiz na minha pesquisa, isto é, estudar o plano da cultura erudita e investigar o plano da prática efetiva dos agentes históricos. Graças à internet, que revolucionou o nosso modo de produzir história, tive acesso às fontes por meio das plataformas digitais. Sem a internet, uma pesquisa dessas dimensões jamais poderia ser produzida.
HD: Quais foram os fatos ou dados que mais te surpreenderam ao longo da pesquisa?
AR: Surpreendi-me com muita coisa. Fiquei impressionada com a desfaçatez com que os governadores buscavam fortuna, inventando artifícios para explorar a população local. Os traficantes de escravos que passavam pelo porto do Rio de Janeiro diziam, desde o século 17, que preferiam ser assaltados por piratas e corsários em alto-mar do que ter que parar ali, porque sabiam que eram obrigados a pagar uma propina milionária ao governador da capitania. Tinham que pagar em espécie, isto é, ceder os escravos escolhidos pessoalmente para o governador. Também fiquei impressionada com a reação indignada da população, que raramente tinha uma postura passiva e inerte ante aos desfeitos. Muito pelo contrário. Alguns moradores chegavam a embarcar para Portugal, para bater às portas do rei, com o objetivo de denunciar os maus governadores.
HD: Qual é a importância da publicação de "Corrupção e Poder no Brasil" neste momento?
AR: Há, no senso comum, a idéia de que a corrupção no Brasil vem do período colonial, que ela faz parte dessa nossa herança colonial. Alguns dizem que é uma tradição ibérica... Apesar de todos os grandes historiadores brasileiros, como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, terem chamado a atenção para esse problema, poucos foram os que, antes de mim, se debruçaram para entender essa herança colonial. Até porque há uma espécie de tabu em relação à história da corrupção no Brasil. Meu livro é um dos primeiros a eleger a corrupção como objeto de análise. E ele desmonta alguns lugares-comuns enraizados na historiografia brasileira, um deles é de que não cabe falar em corrupção para o período colonial, porque o conceito não se aplica àquela sociedade. Falar do nosso passado nos ajuda a entender o Brasil de hoje, nos permite exorcizar os nossos próprios demônios, e superar esse passado que ainda está vivo em nós. Precisamos entendê-lo para romper com ele.
HD: Quais são as principais semelhanças entre as ações corruptas praticadas no Brasil Colônia e a corrupção da atualidade? E quais as diferenças?
AR: O conceito de corrupção naquele período era mais amplo e abarcava práticas de natureza moral e religiosa. Há, em alguns casos, uma superposição entre as práticas do presente e as do passado. A corrupção era entendida como o resultado das práticas que subvertiam o princípio de justiça necessário ao bom ordenamento da sociedade. Era o efeito e não as práticas em si - como acontece hoje em dia. Uma heresia, por exemplo, era um fator de corrupção do corpo político. E todo mau governante também o era. Um ponto em comum é a distinção entre o bem comum, que pertence à toda sociedade, e o bem particular. Toda vez que um governante coloca os próprios interesses à frente do bem comum, ele está concorrendo para a corrupção daquela sociedade. E em minha pesquisa, eu me detive sobretudo nos casos de enriquecimento ilícito dos governadores de capitania - e naquela época, havia também indignação quando um governador chegava pobre aqui no Brasil e, três anos depois, voltava rico para Portugal. As pessoas ficavam atentas ao crescimento do patrimônio das autoridades.