Sebastião Salgado - O América e a terra são dele

Elemara Duarte - Hoje em Dia
Publicado em 05/03/2014 às 07:46.Atualizado em 20/11/2021 às 16:26.

O fotojornalista Sebastião Salgado, 70 anos completados no início de fevereiro, abre o coração para mostrar a sua trajetória de vida na biografia “Da Minha Terra à Terra” (Editora Paralela). Pela primeira vez, o mineiro de Aimorés, torcedor do “Coelho” desde criancinha e considerado um dos mais importantes fotógrafos do mundo, volta o foco para si mesmo. 

Escrito pela jornalista e amiga pessoal de Salgado Isabelle Francq, a biografia chega às lojas este mês. De Paris, em conversa com o Hoje em Dia, Salgado diz que gostou do “exercício” meio terapêutico de sentar numa cadeira e repassar suas memórias.
 
O texto do livro é narrado por Sebastião, em primeira pessoa. A trama foi resultado de várias horas de gravações, em quatro encontros com Isabelle. “Ela veio com a proposta da biografia. É uma amiga. Fiquei sem jeito de dizer não. Ela escreve bem, pois não aparece no texto. Foi um papo com uma amiga. É diferente de uma entrevista”, observa.
 
Em depoimentos detalhados, às vezes íntimos, mas, sempre, muito sinceros, o fotógrafo do preto e branco fala da terra natal, da esposa e dos dois filhos, a quem dedica amor racional e incondicional; da formação universitária (em economia), da saída do Brasil num navio durante a ditadura, da vida na Europa, dos lugares intocados do projeto “Gênesis” e de como a arte da fotografia o seduziu. Sua arte? Pode-se chamar assim? “Pode chamar do que quiser”, diz, em tom de desapego.
 
Salgado "sonha" ver o sertão do século 21
 
“Da minha terra à Terra” é um livro que descreve descobertas de um homem que, desde a infância, sempre foi movido pelo desejo de conhecer o que havia além. Hoje, Sebastião Salgado ainda conserva tal impulso. “Minha vontade é viajar e ver o que restou do grande sertão de Minas, de Guimarães Rosa. Mas é só um sonho. Já estou velho... Quem sabe daqui a uns 20 anos?” brinca.
 
Admirador do romancista de Cordisburgo, Sebastião Salgado se mostra emocionado por ter uma sala vizinha à de João Guimarães Rosa, no Memorial Minas Gerais Vale (Praça da Liberdade), onde ambos têm seus trabalhos mostrados. “É uma honra para mim”, frisa.
 
O tal impulso desbravador do fotojornalista parece mesmo que vem de cedo. Na biografia, ele aponta como essa característica se manifestou: “Eu tinha um cavalo, saía com ele pela manhã e só voltava à noite. A região (Aimorés) é cheia de vales, eu galopava até o fim da fazenda. 
 
Dali, os olhos claros de “Tiãozinho”, como era tratado pela família, miravam o horizonte e o futuro. “Eu sonhava em ver mais longe, tentava imaginar o que haveria depois”, diz, no livro.
 
Mais biografia
 
 
A partir da conversa com a reportagem, Salgado passou a acionar outros arquivos mentais sobre sua vida, costume que passou a acompanhá-lo nos últimos meses. “Se um dia fizer outra biografia, pensaria mais. Depois das conversas, fui lembrando vários detalhes e histórias”.
 
Uma terna passagem já integra esse “desarquivamento”: “Um vez, saí de Aimorés para Belo Horizonte, com minha mãe. Vínhamos num vagão do trem com leito. Saíamos de manhã e chegávamos no outro dia. À noite, eu via aquelas grandes siderúrgicas do Vale do Rio Doce. As chaminés auto-fornos soltavam aqueles fogos maravilhosos...”
 
Então, a mãe vira para o filho, extasiado diante daquelas luzes, e ensina: “Tiãozinho, é daí que sai o seu canivete”. “Achei aquela explicação de uma elegância”, admira-se o fotojornalista, hoje. Segundo ele, com a terna aula da mãe, ele entendeu pela primeira vez o processo industrial.
 
O encantamento com a modernidade faz parte dessas descobertas de Salgado. “Fui um menino que nasceu na roça. Tenho a trajetória da maioria das pessoas de minha idade. É um espelho da vida de muitos. Antigamente, 90% das pessoas moravam em áreas rurais”, compara ele, que cresceu na fazenda do pai.
 
Ainda neste semestre, Salgado anuncia que voltará a Belo Horizonte – não mais de trem. Ele participará da abertura da exposição fotográfica “Gênesis”, que tem percorrido várias capitais brasileiras. O projeto é fruto de oito anos de reportagens e também virou livro, lançado no ano passado. A exposição será montada no Palácio das Artes.
 
Conterrâneo ainda é ídolo de fotojornalista
 
Eles se chamam Sebastião, tinham apelido de “Tiãozinho” e nasceram em Aimorés. Porém, um deles virou jogador de futebol, bateu um bolão no América mineiro nos anos 1950 e, por isso, entrou para a lista de ídolos do outro, na época, ainda menino. 
 
“Ainda sou americano”, frisa o fotojornalista Sebastião Salgado, o então “menino” da história. Este é mais um “arquivo” que ficou de fora da biografia, aponta ele. “Na minha cidade, todo mundo era América por causa do Tiãozinho Lima”, lembra. Hoje, da França, onde vive, Salgado diz que acompanha os jogos da primeira e a segunda divisão do Campeonato Brasileiro, mas... “O meu América não consegue se manter na primeira”, lamenta.
 
Por onde anda?
 
O inesquecível “ídolo” de Sebastião está com 77 anos. O descontraído apelido deu lugar para o respeitoso “Doutor Lima”. Sebastião Lima mora no Rio de Janeiro com a família e é médico gastroenterologista aposentado. “Um ex-presidente contou sobre essa admiração do Sebastião Salgado. Nunca o conheci pessoalmente”, diz, se mostrando feliz com a lembrança do conterrâneo. O ex-atleta conta que veio para Belo Horizonte para estudar. Aqui, jogou na categoria juvenil do América onde foi tricampeão e, em seguida, ingressou no profissional.
 
Daí, o time que integrou foi campeão mineiro em 1957, mas Tiãozinho não jogou as finais pois foi para o Vasco. Atuando no time da cruz de malta, passou no vestibular para medicina e largou os gramados. 
 
O nome do ex-atleta está listado entre os milhares de jogadores que passaram pela história do time conforme levantamento do pesquisador Carlos Paiva. “Tiãozinho era camisa 11”, acrescenta, vasculhando o levantamento. Mas para Sebastião Salgado “Tiãozinho” será sempre o camisa 10.
 
Família e filho ‘especial’ representam amor incondicional
 
“Há mais de 30 anos, nossa vida, minha, de Lélia (esposa) e Juliano (filho mais velho), também acontece no mundo da deficiência. Vivemos a solidariedade e também a falta de solidariedade. Quando Rodrigo nasceu (filho mais jovem de Sebastião Salgado diagnosticado com trissomia, alteração genética na qual o indivíduo tem três e não dois cromossomos), amigos que eram muito próximos se afastaram. Alguns não conseguiam vê-lo, isso me fez sofrer muito. (...) 
 
De todo modo, é preciso compreender. Senão, nos tornamos amargos. 
 
Também nos demos conta de que muitos não sabem o que dizer, não sabem como se comportar com uma criança diferente, que agarra, abraça. Que baba. Felizmente, esse não foi o caso de todos os nossos amigos”.
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