O mineiro Silvio Viegas é mestre em Regência pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, e durante oito anos esteve à frente da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. No ano passado, voltou à Belo Horizonte para assumir a regência da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG). Em uma entrevista franca ao Hoje em Dia, ele aponta as conquistas e desafios desta volta, além de analisar o momento atual da música erudita no Estado e no Brasil e de equipamentos como o Palácio Das Artes.
Você completou pouco mais de um ano como regente titular da OSMG Quais eram suas metas iniciais ao assumir o posto?
Meu objetivo quando aceitei o posto era de colocá-la mais uma vez dentro do cenário das grandes orquestras brasileiras. Após a criação da Filarmônica, a OSMG passou por momentos de grande dificuldade e perigo de ser extinta. Sobreviveu graças, principalmente, a luta de seus músicos. Foram anos difíceis, sem uma temporada sólida, perdendo espaço artístico e tendo de trabalhar com um quadro reduzido de músicos. Esse cenário melhorou com a realização do concurso e a chegada de maestros da qualidade do Roberto Tibiriçá e Marcelo Ramos. Havia uma grande expectativa de crescimento com o atual governo e acreditei que poderia implementar muitas das idéias que tinha e da experiência que ganhei nos oito anos que estive à frente da orquestra sinfônica e da direção artística do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Temos hoje uma temporada que é lançada no início do ano e mantida, conseguimos convidar grandes regentes, grandes solistas, principalmente cantores, e grandes diretores de ópera. Tivemos uma participação muito maior dos três corpos artísticos da casa em nossas produções e essa interação nos deu um grande diferencial em relação aos demais organismos culturais do estado.
Quais são os desafios que ainda perduram, seus planos futuros?
A OSMG é uma das orquestras profissionais mais mal pagas do Brasil. O piso salarial é compatível com o de uma orquestra jovem de São Paulo. Desta forma não conseguimos atrair grandes músicos de outras partes do Brasil e perdemos vários de nossos talentos para outras praças. Os excelentes músicos que permanecem sofrem, pois não podem investir em um instrumento novo e de maior qualidade, ou mesmo pagar a manutenção frequente de seu instrumento. Esse material é todo importado e custa caro. Sem a devida valorização financeira é impossível dar um outro passo mais adiante. Ao contrário, tudo que conseguimos nesses últimos anos tende a retroceder. Os músicos tem se empenhado ao máximo, mas eles precisam e merecem essa valorização financeira. A qualidade sonora, e mesmo visual, de uma orquestra depende disso. Uma orquestra de primeiro nível, soa bem pelos bons músicos que possui e pelos excelentes instrumentos que estes músicos possuem. Não tenho como cobrar de um músico meu cinco horas de ensaio diário, pagando menos da metade que um músico da outra orquestra do nosso Estado recebe. Mas não somente a orquestra sofre com a falta de recursos, a cultura de modo geral sofre e sempre sofreu com ela. O Estado paga por duas orquestras sinfônicas e deveria, na minha opinião, dizer o que espera delas. Podemos ter campos de atuação ainda mais distintos e dar ao contribuinte um produto muito mais diversificado. Mas assumir caminhos, significa dar condições de trilhar-los posteriormente. Existe muita coisa que pode ser feita, o que fazemos aqui tem uma qualidade incrível e, na maioria das vezes, ninguém de fora do nosso Estado, ou mesmo da nossa cidade, fica sabendo disso. Continuando nessa linha de raciocínio, outro aspecto que me preocupa é o acesso da população à informação. Estamos vivendo um momento muito diferente no mundo. Antigamente, bastava um cartaz e um divulgação nos jornais escritos que se conseguia uma casa cheia. Com um anuncio ou matéria na TV então, era sucesso garantido. Hoje em dia temos tudo isso e muitas vezes a grande parte de nosso público nem fica sabendo de algumas de nossas produções. Precisamos fazer um estudo sobre isso. Entender o que mudou e onde está o erro, tanto da parte da comunicação e divulgação, quanto da nossa parte.
Nos últimos anos, podemos dizer que a ]música erudita] em Belo Horizonte ganhou uma outra cartografia, com a inauguração da Sala Minas Gerais ou da popularidade de eventos como a Sinfônica Pop (que une a orquestra com nomes de peso da MPB)?
A Sala Minas Gerais é uma maravilha! A Sinfônica Pop é um sucesso muito antes da minha chegada! Obviamente são dois produtos com apelos muito distintos. A sala é um exemplo de acústica para música sinfônica, construída para dar o melhor som tanto para os executantes quanto para o público, além de ser um espaço confortável, elegante e bonito. A Sinfônica Pop é a junção de dois gêneros e acaba atraindo um público que nem sempre frequenta as salas de concerto e trazendo ao palco do mais tradicional teatro de Belo horizonte os maiores nomes da música brasileira. Ter a filarmônica e a sinfônica atuando de forma constante e realizando um repertório que seja diversificado e atrativo é o melhor caminho para que tenhamos um cenário cada vez mais rico em Minas Gerais.
Tomando como gancho a recente montagem de “Porgy and Bess”, trata-se de uma produção híbrida, no sentido de trabalhar com uma obra do cancioneiro musical norte-americano, e propor uma abordagem atualizada, contemporânea, tanto em temática como na apresentação. Este é um caminho fundamental de diálogo não apenas inter- artística, mas também com o público?
Precisamos seduzir o nosso público. Precisamos renovar nosso repertório fazendo algo que seja atraente e encantador. O Palácio das Artes, por ter uma companhia de dança, um coro e uma orquestra profissional pode realizar muito mais do que qualquer outro organismo cultural do estado. Temos a união de várias linguagens estabelecidas em nossa programação. Entreter, informar e educar, são funções de um organismo cultural no Brasil. Temos um universo de coisas para explorar ainda.
Falando em público: talvez possamos dizer que ainda perdura a consagrada visão da música erudita como algo elitista, exclusivista. O que você pensa a respeito disso e qual o papel assumido pela OSMG diante deste contexto?
Infelizmente ainda existem muitos que acreditam nisso e acaba se tornando uma verdade no inconsciente coletivo. Meu trabalho nos concertos que fazemos na série “Sinfônica ao Meio-Dia” é exatamente o de retirar essa falsa ideia. Por isso convido a todos para filmarem, fotografarem, a subirem no palco para assistirem ao concerto junto aos músicos, interagirem e perceberem que a música de concerto, a ópera, a música sinfônica é deslumbrante, interessante, rica e fascinante. Quem escreveu essas obras-primas que tocamos foram seres humanos como nós, e que ali colocaram seus mais profundos sentimentos–sentimentos esses que são comuns a todos nós. Abrir os ouvidos e o coração para escutar o que Beethoven, Tchaikovsky, Verdi, Villa-Lobos ou qualquer outro gênio está falando com você, significa entrar em contato direto com a parte mais íntima de sua alma. A música desses gênios nos tornam mais humanos, no sentido mais lindo e digno da palavra.
Para além, qual o lugar e a importância da música erudita no tecido cultural atual? Como você vê a música afetando as pessoas no cotidiano delas?
Somente com educação e cultura esse país terá solução e a música erudita é uma ferramenta importantíssima nesse processo. Ela ensina que devemos ouvir o próximo, que devemos respeitar as diferenças e que o mundo é muito mais rico de cores e sons do que as pessoas que não frequentam uma sala de concertos imagina. A população brasileira deveria ouvir música erudita como se ouve qualquer outra. Fui convidado para um jantar na casa de pessoas que eu não conhecia e eles colocaram Eric Satie a noite toda. Ninguém reclamou ou achou chato. Aquela música estava tocando na casa como poderia estar tocando Marisa Monte ou Vinícius de Moraes. O que falta é dar as pessoas mais acesso a música de concerto. Fazer com que ela seja parte constante do dia-a-dia de qualquer pessoa. Nesse aspecto os concertos no parque são maravilhosos. Não existe uma apresentação da orquestra nesta série que não emocione milhares de pessoas. Temos de levar a música onde o povo está e neste aspecto, nenhuma série é mais democrática que os Concertos no Parque.
Recentemente, o Palácio das Artes tem sido palco não apenas de eventos artísticos, mas também de manifestações por vezes de cunho político, tanto de questões internas (como na campanha “Menos Palácio Mais Artes”) quanto externas (a recente cizânia envolvendo a exposição Arteminas). Qual a sua visão destas movimentações todas?
Acredito que quando uma manifestação luta para que a educação e cultura seja valorizada e mantida, ela é digna de atenção. Mas quando as pessoas usam da arte para defender seus pontos de vista pessoais em relação a religião ou a política eu não vejo nenhum sentido nisso. A criminalização da arte, como agora se discute, é algo muito perigoso. Já se discutiu o racismo na literatura de Monteiro Lobato, agora a religião nas exposições, em breve teremos a volta da censura para tudo. Na minha opinião a Fundação Clóvis Salgado já teve exposições muito mais interessantes artisticamente do que esta última, mas como não geraram nenhum tipo de comoção não foram tão divulgadas e, consequentemente, visitadas quanto esta última. Acaba que quem lutou contra essa exposição, deu a ela maior visibilidade e aguçou o interesse do público de vê-la. Vivemos em um pais que para que a arte seja notícia, ela tem de causar algo que ultrapasse seu significado real. Quantas óperas foram feitas no Theatro Municipal do Rio de Janeiro? Centenas! Mas somente quando o diretor Gerald Thomas tirou as calças e mostrou seu traseiro para o público que uma produção operística ganhou espaço nacional em todos os jornais e programas televisivos. Vivemos no país dos escândalos, onde ser famoso é mais importante que ser competente e onde ser rico vale mais que ser honesto.