Entrevista

'Distúrbio climático é um problema de saúde pública', diz Luana Araújo

Médica epidemiologista e infectologista alerta sobre problemas de saúde relacionados ao tempo seco e a importância de manter a vacina em dia

Angel Drumond
portal@hojeemdia.com.br
16/09/2024 às 07:30.
Atualizado em 16/09/2024 às 09:36
 (Bruno Haddad)

(Bruno Haddad)

No cenário atual de seca extrema, os cuidados com a saúde tornam-se ainda mais cruciais. Para esclarecer como enfrentar esse desafio e a importância das vacinas, conversamos com Luana Araújo, médica que ganhou os holofotes na pandemia devido à defesa da ciência e o combate às fake news. Com 44 anos de idade e mais de duas décadas de experiência nacional e internacional como epidemiologista e infectologista, Luana é natural de Adamantina, interior paulista, e mora em Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Atualmente, Luana lidera um time no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, onde aplica tecnologias avançadas para promover a equidade em saúde. Casada com o fotógrafo mineiro Bruno Haddad e mãe do pequeno Bem, ela compartilha com os leitores do Hoje em Dia suas valiosas perspectivas sobre o impacto da seca na saúde e a necessidade de manter a vacinação em dia.

Seca prolongada e falta de chuvas são problemas de saúde pública? Em que medida?

Todo e qualquer distúrbio ambiental ou climático que coloque pessoas sob risco, especialmente quando falamos em populações, deve ser considerado um problema de saúde pública. Seca prolongada e falta de chuvas não só vulnerabilizam organismos, deixando as pessoas mais suscetíveis a doenças de um modo geral, notadamente doenças respiratórias, doenças cardiovasculares e doenças renais, como também afetam desproporcionalmente populações dentro de uma mesma região, principalmente aquelas que são dependentes de agricultura ou agropecuária de subsistência. Então, sim, devem ser considerados problemas de saúde pública, porque além de tudo, afetam os sistemas de saúde, sobrecarregando e dificultando o atendimento de outras afecções não necessariamente ligadas a essas dificuldades climáticas ambientais.

Como minimizar os impactos da seca na gestão da saúde pública?

Isto passa pela compreensão da natureza multidimensional do seu impacto. Então, é preciso que haja um plano para acolher as pessoas no sistema de saúde, tentando minorar as dificuldades que são decorrentes da seca e da falta de chuvas. É preciso que haja um esforço na hidratação das pessoas, além de postos avançados de hidratação, campanhas informativas sobre os problemas relacionados a essas dificuldades, e é claro, a ação conjunta transversal entre autoridades para diminuir aquelas causas ambientais que estão perpetuando ou piorando um fenômeno natural para além da seca. Por exemplo, a gente tem as queimadas hoje, então é preciso um esforço ainda maior para diminuir esse tipo de agressão.

(Gabriela Biló)

(Gabriela Biló)

Individualmente, como cada pessoa pode se proteger? E contra doenças transmitidas por água e alimentos contaminados por fuligem, fumaça, etc?

O maior problema aqui é a qualidade do ar e a eventual indisponibilidade da água. Então, sobre a qualidade do ar, a gente tem nessa época de seca e de queimadas, principalmente, uma quantidade muito grande de partículas minúsculas que ficam suspensas no ar. E essas partículas são tão pequenas, derivadas dessa fuligem, da queima, que elas conseguem penetrar profundamente no pulmão das pessoas. Inicialmente, aquelas pessoas mais vulneráveis precisam ter mais atenção à sua saúde. A gente está falando de crianças pequenas, de idosos, de pessoas com problemas pulmonares ou problemas cardiovasculares. Essas pessoas precisam ter uma atenção ainda maior. Conforme esse nível vai piorando, e a gente está percebendo isso acontecer em várias partes do país. São Paulo é um exemplo muito claro disso, a gente estende essa orientação para além das populações vulneráveis. Então, uma forma de fazer isso é evitar exposição ao ar livre, se manter em ambiente fechado, termicamente controlado. Se puder, use ar-condicionado, se puder, use um umidificador para compensar a secura do ar. Se for necessário se expor ao ar livre, pode e deve usar máscara, e aí a máscara adequada é a N95. Acho que as pessoas podem se lembrar da época da pandemia, ela é aquela que consegue filtrar as menores partículas. Vale a pena evitar exercícios ao ar livre, evitar se expor ao sol em horários de pico. Então é tentar minorar essa exposição ao ar ambiente. Sobre a água, não costuma ser um problema na qualidade dela, mas sim o acesso a ela, e isso é um problema grave, principalmente nesses momentos em que as pessoas precisam priorizar a sua hidratação. Então é hidratar-se também com a generosidade nesse período. É muito importante e é dever da gestão facilitar o acesso a esse bem.

A poluição em grandes cidades, como Belo Horizonte ou Contagem, tende a agravar os prejuízos à saúde nesse contexto? Como amenizar os danos?

Elas (as cidades) já tem um nível basal de poluição maior do que outras cidades com menor produção industrial. Nesse momento de seca, elas têm esse nível agravado. Passa de novo pela solução de medidas individuais, mas também pela ação energética da gestão pública que precisa não só aumentar a sua capacidade de lidar com as complicações decorrentes desse clima, como também precisa agir para melhorar. Isso para evitar que esses problemas aconteçam de uma maneira mais disseminada.

Uso da máscara nos grandes centros urbanos, onde a poluição já é grande, é eficaz neste momento?

O uso é indicado e é eficaz principalmente pelas populações mais numerosas. Quando essa poluição atinge níveis críticos, todo mundo acaba se protegendo, mas tem que lembrar que é preciso que seja a N95, a máscara com melhor poder de filtragem ou vedação, que tem ação sobre essas partículas minúsculas, que são as partículas derivadas da poluição e das queimadas que a gente está tendo mais contato agora.

A estiagem prolongada facilita a transmissão de doenças, inclusive Covid-19?

A estiagem prolongada facilita a transmissão de doenças infecciosas, de transmissão respiratória, como a Covid-19, mas outras também estão envolvidas. E por dois mecanismos principais, um biológico e o outro comportamental. O primeiro é porque esse ambiente quente e seco levam ao ressecamento da nossa mucosa. Então, a mucosa do nariz, garganta e boca, que são a principal parte de entrada desses microorganismos, acabam sofrendo com esse ressecamento, facilitando a entrada desses agentes infecciosos e dificultando a ação do nosso sistema imunológico. Outro mecanismo diz respeito a gente tentar se proteger desse ambiente quente, seco e poluído. E essa tentativa de proteção envolve procurar um lugar com uma temperatura melhor, com uma qualidade de ar melhor, o que nos leva normalmente a nos fecharmos em ambientes com ar condicionado e sem grande circulação de ar. Então, a gente acaba promovendo a aglomeração de pessoas em ambiente fechado, sem troca de ar, que facilita muito o trabalho de disseminação desses vírus respiratórios, principalmente.

(Arquivo Pessoal)

(Arquivo Pessoal)

Poderia estar relacionada ao aumento dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave apontado recentemente pela Fiocruz?

Nós temos nesse momento uma circulação bastante intensa de vários vírus respiratórios. Influenza, própria Covid, vírus sincicial respiratório. Então, essa questão ambiental e climática, associada a uma presença importante desses vírus, facilita ainda mais a sua circulação, e com isso, faz com que esses vírus consigam chegar a populações ainda mais vulneráveis, nesse sentido, e isso pode ser um fator contribuinte principalmente do número de casos, mas certamente não é o único fator responsável por isso.

Estamos em ano eleitoral, e mais de 5,5 mil prefeitos serão eleitos no país. Considerando a experiência adquirida na pandemia de Covid-19, quais lições eles podem aplicar para melhorar a resposta a emergências de saúde pública relacionadas a crises climáticas, como a seca?

Acho que a primeira coisa que é preciso entender é que não aprendemos quais são as lições. Porque se tivéssemos aprendido, a gente teria a compreensão de que é preciso antever os impactos, predizer os recursos que serão necessários para minorar esses impactos e aplicá-los em tempo hábil, e não esperar a crise chegar a um ponto insustentável para só então começar a agir. E a gente não vê esse movimento em nenhuma das esferas de governo, nem municipal, nem estadual, nem federal. Então, envolveriam esse monitoramento climático ambiental, a mensuração desse impacto em tempo real para que a gente conseguisse predizer o quanto que essas alterações exigiriam do sistema de saúde e aí capacitar esse sistema de saúde para lidar com essas crises. Seria importante que houvesse treinamento dos recursos humanos relacionados ao sistema de saúde para lidar com esses impactos. Seria importante que tivéssemos uma campanha ostensiva de informação à população sobre o que fazer e como se proteger nesses momentos mais complicados. Uma ação transversal conjunta com outras outras áreas do governo para atuar uma causa dessa circunstâncias e é isso a gente não está vendo acontecer. Quer dizer, a gente está vendo agora o começo de um movimento relacionado à crise, mas no momento já de pico, em que há um grande impacto sobre a saúde das pessoas.

Desafio na saúde pública, segundo vários especialistas, é aumentar a cobertura vacinal. Vários candidatos se declaram favoráveis à imunização, mas afirmaram que vão deixar a “escolha” de vacinar ou não a cargo de cada família. Como infectologista e epidemiologista, como vê essa postura?

Essa covardia em assumir uma postura pró-população deveria ser uma grande bandeira vermelha para o eleitor com relação a esse candidato, ou a essa candidata. Quando alguém que pleiteia um cargo público se omite do seu dever em nome de uma chance maior de chegar ao poder, isso já deveria dizer muita coisa sobre essa pessoa e ela não deveria ter nenhum acesso a qualquer cargo público. Vacinação é das medidas de saúde pública com maior impacto na história da humanidade e a ignorância com relação aos benefícios da vacinação denota completo o despreparo de qualquer pessoa para assumir a responsabilidade de lidar com a população.

Na prática, o que os futuros prefeitos devem ou podem fazer para efetivamente alavancar esses índices de cobertura vacinal, num cenário onde o discurso antivacina ainda reverbera?

Na prática, é preciso, de maneira geral, melhorar o acesso das pessoas à informação, quer dizer, educar a população sobre a vacinação, lembrando que a vacinação é vítima, em grande parte, do seu próprio sucesso, uma vez que ela diminui muito a ocorrência de doenças infecciosas gravíssimas. Então é preciso que haja um esforço de educação para mostrar a importância de se manter a vacinação em níveis adequados. É preciso um esforço de educação dos profissionais de saúde pública, porque muitos, infelizmente, são parte do problema da ignorância relacionada ao processo da vacinação, e é importante, acima de tudo, que os gestores identifiquem quais são os gargalos que a população enfrenta na hora de vacinar, de se vacinar e vacinar seus filhos, crianças principalmente. É um problema de acesso, o horário de acesso ao posto é ruim. É preciso que essas vacinas cheguem mais perto das pessoas, em outros lugares, para além dos muros dos espaços de saúde e de maneira assertiva.

Municípios do interior de Minas têm relatado falta de vacina contra varicela, meningite, Covid, hepatite A e Tríplice (DTP). Quais os riscos trazidos pelo atraso desse fornecimento e, consequentemente, na aplicação?

A gente tem um cenário bastante ruim em relação a isso no país como um todo, não é só em Minas Gerais, nem só no interior. Infelizmente outros estados e cidades maiores, e capitais também, têm enfrentado esse problema e a grande repercussão está relacionada à diminuição da cobertura vacinal. O que vai ter um impacto diferente para cada uma dessas doenças e que quanto mais fácil de ser transmitida e quanto mais grave ela for, maior o risco. Então eu vou falar rapidamente sobre alguma delas. A varicela, que é a catapora, que as pessoas costumam achar que é uma doença comum de infância, sem impacto, na verdade ela pode causar uma doença grave em crianças, embora seja um quadro menos comum. Mas é importante lembrar que a catapora, uma vez que entra no organismo humano, ela nunca é eliminada. Mesmo com a melhora da doença, mesmo que a varicela vá embora, o vírus permanece lá para o resto da vida. E toda vez que alguém tiver uma diminuição de imunidade causada ou por outra doença, ou por uso de drogas que diminuem a imunidade, ou pelo próprio envelhecimento, esse vírus pode despertar e causar nas pessoas aquilo que elas chamam de herpes zoster. Então a vacina evita que isso tudo aconteça. Além de ser importante lembrar que a varicela em adultos, como a primeira manifestação, tem potencial de ser mais grave do que em crianças. Meningite, talvez fosse desnecessário comentar, mas Meningite é uma doença de alta letalidade e que quando diminui essa cobertura vacinal deixa as pessoas atualmente vulneráveis a uma doença cujo tratamento precisa ser imediato e cuja manifestação clínica tende a ser muito ruim. A Covid, enfim, acho que a gente conhece bastante nesse momento, mas quando a gente diminui a cobertura vacinal principalmente daquelas pessoas vulneráveis, que são hoje o grupo de alvo da vacinação, a gente aumenta a chance dessas pessoas terem doença grave e virem óbito e isso aí inadmissível para uma doença imuno prevenida. Vou ressaltar também o retorno da coqueluche como uma doença grave, e que já levou a óbito em Minas Gerais uma criança, e isso também é inadmissível. É uma vacina que é ofertada para todas as gestantes e ela é feita para crianças. Na hora que essa essa vacina falta, a gente acaba colocando essa população em risco.

(Arquivo Pessoal)

(Arquivo Pessoal)

Caso a baixa cobertura vacinal contra várias doenças não seja revertida, em quanto tempo a população, como um todo, verá os resultados dessa conduta? Quais seriam esses efeitos?

A gente, infelizmente, já viu os resultados dessas baixas coberturas. Eu mencionei há pouco a coqueluche, que tem um aumento exclusivo de casos e óbitos relacionados à doença, alguns deles aqui em Minas Gerais. A gente vê o sarampo pelo país, a gente vê o risco inacreditável de reintrodução da poliomielite, que seria um cenário devastador. É preciso lembrar também que esses riscos são desproporcionais na população com aquelas pessoas em condições socioeconômicas de maior vulnerabilidade sendo sempre mais penalizadas do que outras com uma possibilidade de acesso diferenciado do sistema de saúde. Isso deveria ser não só uma ação prioritária dos candidatos a qualquer cargo eletivo nesse país, como também uma exigência da população que isso fosse abordado de maneira assertiva. Lembro que a saúde é uma cláusula pétrea da nossa Constituição. O direito à saúde é um dever do Estado, do direito do cidadão e portanto, deveria estar à frente de outros interesses.

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