Entrevista

‘Não basta privatizar e não fiscalizar’, diz Alysson Coimbra, da Associação de Medicina de Tráfego

Renato Fonseca
rfonseca@hojeemdia.com.br
28/08/2023 às 11:16.
Atualizado em 28/08/2023 às 11:21
Alysson Coimbra Carvalho é o diretor da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra) (Maurício Vieira)

Alysson Coimbra Carvalho é o diretor da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra) (Maurício Vieira)

Uma semana após o grave acidente que deixou sete mortos na rodovia Fernão Dias, na Grande BH, a tragédia ainda repercute. Falhas mecânicas, falta de licença e caixa-preta danificada são apenas algumas das irregularidades encontradas no veículo que bateu em um barranco e capotou. O desastre também escancarou a urgência por mais fiscalização, mesmo em vias privatizadas. A concessão é um dos melhores caminhos para reduzir as fatalidades nas estradas, mas também demanda vistorias frequentes por parte das autoridades, reforça o diretor da Associação Mineira de Medicina do Tráfego (Ammetra), Alysson Coimbra Carvalho.

Natural de João Pinheiro, na região Noroeste de Minas, o médico está no cargo há cinco anos. Atualmente, atua em clínicas médicas e psicológicas credenciadas pelo Detran-MG, além de coordenar a Mobilização Nacional de Médicos e Psicólogos Especialistas em Tráfego. Nessa entrevista, Alysson Coimbra aborda a importância da privatização, acompanhada de duplicação e revitalização, da BR-381. Também destaca as responsabilidades das autoridades em investir em sinalização, fiscalização, mudanças estruturais do traçado e da qualidade asfáltica, mas sem esquecer que a prudência dos motoristas nunca pode ser ignorada. “Hoje, 90% dos sinistros de trânsito são provocados por fatores humanos”. 

O que é a medicina do tráfego? Para que serve?
Medicina do Tráfego é uma das 55 especialidades médicas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e tem a responsabilidade de avaliar a saúde física e mental de motoristas e candidatos a motoristas, definindo a aptidão ou inaptidão para a condução veicular. Atuamos no processo para obtenção ou renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

Que lições foram deixadas após o capotamento de ônibus que matou sete torcedores do Corinthians e feriu 27 em Minas?
A maior lição é a de que não podemos tratar o trânsito como um mecanismo político, para ganhar votos de uma parcela da população. O trânsito precisa ser tratado como a questão de saúde pública. Nos últimos quatro anos assistimos o governo federal impor uma série de concessões inacreditáveis a condutores de veículos pesados, como a redução da fiscalização da Lei do Descanso; ampliação do limite de pontuação para motoristas infratores e o aumento do prazo de validade da CNH, cujo único objetivo foi atender a uma parcela da população em detrimento da coletividade. Uma fiscalização atuante poderia ter evitado essa tragédia. Quase 70% dos veículos de grande porte são de motoristas autônomos, uma frota que tem, em média, de 12 a 15 anos, e cuja manutenção preventiva e corretiva deixa a desejar. Sabemos que esse é um problema nacional e fruto do abandono e das desastrosas políticas de flexibilização do Código de Trânsito Brasileiro. A redução da letalidade e sinistralidade de um trecho é menor quando realizamos intervenções a partir do entendimento de que 90% dos sinistros de trânsito são provocados por fatores humanos. Por isso a manutenção das vias e, principalmente, a intervenção em pontos críticos (trechos com altos índices de sinistros) com sinalização, fiscalização e mudanças estruturais do traçado e qualidade asfáltica são imprescindíveis para reduzir a letalidade de eventos como esse. 

Outro ponto é o desmonte da fiscalização do transporte rodoviário de passageiros pela ANTT e a falta de operações para a retenção de veículos que circulem com problemas no Cronotacógrafo, que é a “caixa preta” desses veículos, que registra informações como tempo de jornada e velocidade

Além das irregularidades cometidas por motoristas e empresas irregulares, historicamente convivemos com o sucateamento das rodovias. Como resolver isso? Quais o senhor poderia citar para que os motoristas redobrem ainda mais a atenção ao trafegar?
É preciso que cada ente público cuide das rodovias e estradas sob sua responsabilidade. O desafio passa pela habilidade de investimentos em recuperação, modernização e ampliação da malha rodoviária do Brasil. Modelos consagrados de Parcerias Público-Privada (PPP) são bem-vindos. Nosso Estado, por sua grande dimensão, é cortado por inúmeras estradas e rodovias, sendo uma rota importante de escoamento da produção. Porém, na mesma proporção territorial, também temos grandes dificuldades. Nossas rodovias são antigas e precisaremos de uma ação conjunta voltada para a recuperação e intervenções em trechos críticos. Até que isso aconteça, cabe ao motorista que trafega nessas vias alguns cuidados: ter o mínimo de conhecimento prévio da estrada ou rodovia, buscar informações sobre a conservação e sinalização do trecho, condições de fluxo, existência de acostamento, áreas de serviço e segurança. Nunca pegue a estrada cansado ou com sono. Nos trechos com sinalização deficiente, é mais difícil a condução em condições adversas como chuvas e neblina. Nesses casos, o recomendável é ir a um ponto de parada para evitar riscos. Outras medidas que podem ajudar são evitar tráfego em horários de pico; dirigir sempre com o GPS, mesmo que saiba o trajeto, e sempre possuir uma rota alternativa. 

A BR-381 está na mira da concessão. Privatizar a rodovia vai resolver?
Sim, a privatização pode resolver o problema desde que seja feita de forma cuidadosa e com um contrato que cobre contrapartidas a curto, médio e longo prazo para reduzir o alto índice de sinistros e mortes. É preciso que o governo estabeleça nesses contratos as prioridades para cada trecho. Algo urgente é investir na duplicação e intervir em definitivo nos principais pontos críticos. Não basta privatizar um trecho e não fiscalizar o cumprimento dos dispositivos contratuais, se não o motorista terá apenas mais um gasto. Sabemos que não há investimentos para recuperar todos os trechos críticos, por isso a privatização pode ser uma das saídas. 

Durante meses uma emenda impediu a aplicação da Lei do Descanso para motoristas profissionais. É possível “barrar” os riscos da privação do sono?
Em setembro do ano passado, o Congresso aprovou uma emenda apresentada pelo governo federal que impossibilitou a fiscalização dos motoristas de ônibus e de caminhão no cumprimento da Lei do Descanso. A Ammetra fez um estudo que mostrou uma queda de 74% nas fiscalizações e nas multas. Essa lei é indispensável para evitar que motoristas cansados e sob efeito de estimulantes continuem dirigindo e colocando em risco suas vidas e as da coletividade. Pesquisas recentes mostram que a privação de sono causa o mesmo efeito e o mesmo risco de acidente que o consumo de álcool. A Lei do Descanso determina que o motorista pare de dirigir por 30 minutos a cada seis horas de trabalho. É proibido passar mais de cinco horas e meia ao volante sem interrupção. No caso do transporte de passageiros, esse limite é reduzido para quatro horas. Isso não é respeitado por causa da pressão por entregas rápidas e de aspectos econômicos que fazem com que caminhoneiros dirijam por prazos longos e, muitas vezes, valendo-se do uso de estimulantes e substâncias psicoativas para manterem-se despertos. Se analisarmos que, no ano passado, 20% dos sinistros nas rodovias federais envolveram veículos de grande porte, entenderemos o risco de uma medida como essa. Caminhões e ônibus representam os sinistros mais graves, com maior letalidade.

Recentemente, o governo sancionou a lei que volta a exigir exame toxicológico para motoristas profissionais. Porém, vetou o trecho que impedia o motorista profissional de dirigir qualquer veículo, em caso de resultado positivo no exame toxicológico. Como o senhor avalia essa decisão?
O uso de drogas e de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública que atinge não só as rodovias e estradas, mas também as zonas urbanas. São inúmeras as ocorrências nas quais, muitas vezes, a constatação do uso de álcool não é positiva, mas o condutor tem todos os sinais do uso de substâncias psicoativas. Hoje, pela falta de instrumentos legais para uma fiscalização mais ampla, esses motoristas ainda acabam saindo impunes. Precisamos finalizar os estudos para a implementação do uso de drogômetros nas fiscalizações de trânsito e precisamos avançar também na aplicação da Lei do Exame Toxicológico para outros motoristas profissionais, como os das categorias A e B, por exemplo. A volta da exigência do exame deve ser comemorada, mesmo com os vetos de artigos inconstitucionais. Isso já representa um avanço. 

Hoje a multa por dirigir embriagado está quase R$ 3 mil. Mesmo assim, mostramos que a média de infrações era de 78 motoristas bêbados detidos por dia em Minas neste ano. Como enfrentar a combinação fatal de álcool e direção?
A Lei Seca completou 15 anos em junho com a incrível marca de reduzir em 76% o número de sinistros de trânsito. Esse foi o resultado de um estudo feito pela Ammetra. Nos quatro primeiros meses de 2009, logo após a entrada em vigor da lei, motoristas alcoolizados provocavam 40 acidentes de trânsito e 2 mortes por dia. Este ano, o número caiu para quase 10 sinistros e 1 morte a cada 2 dias. Não há dúvidas de que dirigir depois de beber mata. O que precisamos, além de campanhas ininterruptas, é de uma fiscalização eficaz nas ruas e nas rodovias. A nossa legislação de trânsito é referência para vários países do mundo, mas ainda esbarramos na sensação de impunidade para os motoristas que matam ao dirigir embriagados. É preciso rever aquele velho argumento de que o motorista que bebe não tem intenção de matar, porque ninguém sai de casa com intenção de morrer. Então é preciso classificar essas mortes provocadas pelo consumo de álcool e substâncias psicoativas como crime doloso.

Durante os últimos quatro anos, os dados oficiais mostraram uma redução considerável das fiscalizações da Lei Seca, de excesso de velocidade e até mesmo das fiscalizações com radares móveis

Todos os anos acontecem campanhas de conscientização no trânsito. Em praticamente todas há distribuição de panfletos durante blitze educativas. Como o senhor avalia as ações para barrar a violência no trânsito. São suficientes? Deveriam ser repensadas?
Precisamos de uma reorganização das políticas públicas voltadas para a educação no trânsito. É preciso uma abordagem multidisciplinar e com a participação dos mais diversos segmentos e atores da sociedade. A educação para o trânsito deve começar no ensino infantil e seguir até o ensino superior; é preciso aumentar o alcance dessas informações para a população por todos os canais de mídia, modernizar as campanhas, trazendo uma linguagem mais nova. A campanha precisa acompanhar os avanços da comunicação e das mídias sociais. Por outro lado, precisamos de maior eficácia das ações de fiscalização, das ações legislativas e das ações jurídicas que acabem de vez com a sensação de impunidade que paira para quem mata outra pessoa ao dirigir embriagado. Além da educação, além da conscientização, de entendimento das leis, o exemplo e o medo da punição são decisivos para que a pessoa repense sua decisão de dirigir após beber ou de dirigir de forma imprudente e perigosa.

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